Independentes mas ainda não livres

Qua, 05/09/2012 - 13:23
Por uma destas coincidências de raridade impressionante, quando estive na Argélia, em abril deste ano, tive que ficar em hotel situado a uns 40 km de Argel e contratei um taxi que me levava à Feira da qual eu participava e me trazia de volta no final da tarde e o motorista me ensinou muito sobre seu país; eram duas horas diárias, no total, ouvindo sobre a Argélia, sua independência, os franceses, os governantes, o desejo de ir morar na França – fingindo ter esquecido o que seus pais passaram sob o jugo colonial francês. A coincidência, no entanto, é que ele repetiu algo que eu lera no Courrier International de 16/03/2012, em artigo de autoria do jornalista argelino Chawki Amari originalmente publicado, em árabe, no jornal El-Watan. A certa altura, o autor fez uma pergunta ao guarda-vidas de uma praia sobre a situação da Argélia e recebeu a resposta, mais ou menos igual àquela que me deu o motorista: “Somos independentes, mas ainda não somos livres. A democracia é uma sobremesa e ainda não se terminou o prato principal”! 

Neste ano do cinquentenário da independência da Argélia, prestemos então uma homenagem póstuma àqueles que tombaram na luta pela liberdade. Que seu sacrifício seja um incentivo aos que ainda lutam para alcançar a liberdade plena, da Argélia à Palestina e outros rincões árabes e em todo lugar onde os povos lutam contra o colonialismo selvagem e criminoso.

Recuando no tempo, saberemos que a Argélia antiga, desde a pré-história, era habitada pelos Berberes, um grupo étnico nômade de origem Camita habitante do Norte da África principalmente nas regiões montanhosas (Atlas e Rif em Marrocos, Cabilia e Aurès na Argélia e em parte do grande deserto). A Argélia foi influenciada pelas civilizações Fenícia (fins do II milênio) e Cartaginense (entre os séculos VII e III a.C.). Os Berberes, os Mouros e os Numidas chegaram a fundar reinados potentes na Numídia e na Mauritânia. No século II a.C., sob dominação romana, a Argélia viveu um período de real desenvolvimento. Ela foi cristianizada e, no século V, os Vândalos devastaram o país. Do século VI ao VII a Argélia passou para o domínio de Bizâncio.

Etapa importante na história argelina foi a chegada dos árabes, no século VII, começando com as incursões chefiadas por Uqba bin Nafih (681-682), quando a Argélia começou a ser islamizada e governada pelos califas Omíadas sediados em Damasco, dinastia que governou o império muçulmano desde 661 a 750 e, desde esta última data, pelos Abássidas, de 750 a 1258, com sede em Bagdá . Os Omíadas se estabeleceram na Espanha desde 756 a 1.031 e continuaram, de uma ou outra forma, exercendo alguma influência no norte da África islamizado.

Islamizados foram os Berberes, sem sombra de dúvida, mas resistiram à dominação árabe e continuam em sua luta até hoje por sua identidade. Eles fazem parte daqueles povos que islamizados que preservaram a sua cultura e sua identidade (como os turcos, os persas e outros povos islamizados) ou sua religião (como é o caso dos coptas egípcios). Esta luta berbere terá seu quinhão quando chegar o domínio europeu francês séculos depois. Entre os séculos X e XI a Argélia ficou sob suserania Fatimida (uma dinastia xiita) até que estabelecessem duas dinastias berberes, dos Almorávidas, que duraram do século XI ao XII que dominaram todo o Maghrib e até partes da Espanha. Dos séculos XIII ao XVI a Argélia foi espedaçada em diversos principados, confederações tribais e cidades-portos livres, abrindo-se com maior vigor à civilização árabe andaluz.

Com a resistência de sempre, a Argélia procurou, já em 1518, diante da ameaça de domínio mais rígida andaluza, e obteve uma parceria com os corsários turcos que colocaram Argel sob proteção otomana. Em 1587 a Argélia forma a regência de Argel e a partir desta passa a ser governada por Beis (príncipes vassalos dos turcos otomanos) a partir do século XVII e passa a viver essencialmente do abastecimento e reparos em navios corsários originários de todo o Mediterrâneo.

A luta argelina contra os franceses começa em 1827 com uma crise diplomática quando, em consequência de uma disputa causada por uma dívida não paga, o Bei de Argel expulsa o Cônsul francês. Era a oportunidade que a França de Charles X procurava e, em junho de 1830, as forças francesas desembarcam em Siddi-Ferruch e em julho ocupam Argel e o Bei Hussain Khodja é obrigado a assinar a capitulação.

Em 1832, precisamente em novembro, começa a luta argelina contra o colonialismo francês, sob o comando do primeiro herói da resistência argelina, o Emir Abd al-Qadir ibn Muhyïddin, o Abd el-Kadir dos franceses (1808-1883) que declara o jihad contra a ocupação e, após a derrota de seus aliados marroquinos e a perda de duas batalhas decisivas se rende aos colonialistas, é preso e ficaria na França até perto de sua morte, ocorrida em Damasco, após ser libertado, doente, pela França. A memória de Abd al-Qadir é tão cultuada pelos argelinos que assisti inúmeras vezes soldados argelinos, dos exércitos franceses de ocupação do Líbano, em fins da II Guerra Mundial, reunidos após o jantar cantarem loas em seu louvor e o taxista que me acompanhou durante minha visita neste ano do cinquentenário da independência argelina, pronunciava palavras de respeito à memória de Abd al-Qadir, 129 anos após a sua morte, lembrando ser este o exemplo da luta contra o imperialismo francês.

Não é para menos! Logo após o início da luta de Abd al-Qadir, a França preferiu assinar um tratado, em 1837, reconhecendo a soberania argelina sobre os dois terços da Argélia, conservando três “possessões” entre as quais Argel, Blida e Orã. Fiel a seus propósitos colonialistas, a França não resistiu e três meses depois suas tropas ocuparam Constantine. Anos depois, em 1843, os franceses voltam a atacar, desta vez a sede do governo de Abd al-Qadir, quando sob o comando do duque d’Aumale massacram as populações civis da cidade e cercanias. Os combatentes e os civis continuariam a morrer até a rendição de Abd al-Qadir.

Em 1848 a Argélia é oficialmente proclamada “território francês”. A luta não pararia aí!

 

Veja também:

 Independentes mas ainda não livres - parte 2