Renato Pompeu, Cylene Dworzak Dalbon e Gershon Knispel Renato Pompeu - O que é um refusenik? É um soldado que utiliza as táticas e estratégias de desobediência civil, como Gandhi e Martin Luther King, porém no âmbito militar. É alguém que, como parte do seu serviço militar, recebe uma ordem e a considera inaceitável, imoral ou ilegal, ruim para seu próprio país ou para outros, e se recusa a cumpri-la. Não somos pacifistas, nem contra o exército, somos contra o uso da força militar para a execução de uma determinada ordem. É uma recusa seletiva. Renato Pompeu - Quais são as ordens que um refusenik israelense se recusa a cumprir? Principalmente nas questões da ocupação e nas guerras do Líbano. Nos dois casos, o refusenik é contrário à manutenção de um regime de ocupação, que é uma tirania, uma ditadura militar, e não tem nada a ver com a defesa do Estado de Israel. O mesmo vale para o Líbano, as guerras e invasões. A organização Yesh Gvul (que quer dizer “Basta” em hebraico) foi que alavancou esse questionamento. Cylene Dworzak - Qual a relação do movimento Yesh Gvul com os refuseniks? A organização fornece suporte a essas pessoas, que correm grande risco de perder trabalho, de ir presas, de ser um peso na família. Alguns membros da organização vão às cadeias, em solidariedade a elas; escrevem cartas ao comando do exército, fazem manifestações, tornam público aquele caso específico. Os refuseniks não se diferenciam muito dos não-refuseniks. Temos refuseniks anti-sionistas, sionistas, da esquerda, da direita, ou pessoas que não se definem em nenhuma corrente política, trabalhadores da indústria, de todos os jeitos. Posso dar o exemplo do meu caso. Até 1967, eu era um soldado e, depois que servi meu período militar obrigatório, todo ano eu era chamado para prestar o serviço militar, que para mim era ok, pois envolvia as questões de defesa do país. Na época em que eu patrulhava as fronteiras, tudo bem. Mas, em determinado momento, estava na região de Sinai quando fui chamado para tomar conta de uma máquina que estava derrubando árvores para abrir espaço para um assentamento judaico. O povo judeu é conhecido pela sua habilidade de transformar o deserto em um jardim cheio de vida. Para alguém transformar uma amendoeira numa árvore (e sei disso, pois trabalhava com plantio de árvores) é necessário muito esforço e muito tempo. Isso não acontece de uma semana para a outra. Horas depois tive outro choque ao saber que o comando do exército havia anunciado uma tentativa de beduínos de se apossarem de terras que não pertenciam a eles. E plantaram pequenas árvores com o intuito de reclamar a sua parte. Isso era mentira! O exército divulgou essa nota para cobrir sua barbárie. Para mim, isso foi o basta! A expressão Yesh Gvul descreve a forma psicológica dessa insatisfação. Renato Pompeu - Você disse “yesh gvul!”, “basta!”, quando você viu árvores sendo derrubadas. Se não houvesse barbárie na ocupação, você acredita que ainda assim existiria o movimento? Você está me fazendo uma pergunta completamente hipotética. Não existe e nunca existiu ocupação sem barbárie. Uma ocupação é um ato de violência. Talvez, uma violência em potencial. Quando o exército estaciona um tanque em frente à sua casa, ele não precisa atirar. A sua presença já é uma violência. Qual é a função do tanque senão ameaçar, senão a violência? Cylene Dworzak - E como as mídias internacional e israelense recebem esse movimento dos refuseniks? A mídia defende o exército. O governo defende o exército. O sistema judiciário defende o exército em 98 por cento dos casos. A mídia diz que estão ocupando os territórios para nos defender, que eles são bons, bravos e heróicos soldados. Quando um soldado mata uma criança de 14 anos, ele será acusado de uso ilegal de uma arma e passará no máximo três meses numa prisão. Esse é o sistema judiciário que privilegia o exército. Gershon Knispel - Existem outros grupos que fazem trabalhos semelhantes ao de vocês, antiocupação? Existem grupos de médicos, mulheres, de direitos civis, de árabes e judeus. Existe uma organização de mulheres que observam os bloqueios militares nas estradas e ficam sentadas com seus caderninhos anotando tudo o que vêem. Elas levam essas anotações a público e aos comandos do exército. Renato Pompeu - Quantos soldados existem no exército de Israel e quantos deles são refuseniks? Não sei. O número de soldados é um segredo militar. É muito difícil precisar e, se houvesse um número, se essa estatística existisse, não seria interessante para o exército divulgá-la, pois haveria o reconhecimento ou a oficialização do movimento. Existe a nossa estatística, que é incompleta, mas creio que houve até o momento aproximadamente 4.000 casos de refuseniks em trinta anos. Desses 4.000, aproximadamente 1.000 foram presos, mas esses números podem não representar a realidade. Somos um movimento que tem efeito direto no governo, influenciando suas regras. Foi o que aconteceu em 1984, quando o exército disse que deveríamos recuar, o que não era a vontade dos políticos. Anos depois, o comandante do exército foi questionado quanto a essa decisão e deu várias razões para tal. Entre elas é que havia um grande número de recusas por parte dos soldados e ele temia que esse número se avolumasse aos milhares. Gershon Knispel - Existem movimentos contra a humilhação, contra a ocupação e existe um que é contra a demolição de casas. É verdade! Esse é um grupo que esqueci de mencionar. O governo tem uma regra, que é demolir casas, pois às vezes elas são construídas sem permissão. Particularmente em Jerusalém. Ou senão são demolidas por punição, por pertencerem a pessoas ligadas a um movimento de resistência. Então o exército vem, derruba a casa, desabrigando a família toda. Aí os participantes desse movimento começaram a protestar, tentam parar as escavadeiras, e quando não podem impedir a demolição vêm no dia seguinte e reconstroem as casas. Destruídas de novo, eles reconstroem, e assim por diante. Cylene Dworzak - Há um trecho no livro no qual você diz que a mídia israelense faz uma grande divulgação de que soldados refuseniks não são patriotas. Isso colabora para que os mais jovens não queiram participar do movimento? Claro! Isso faz parte da agenda do governo. Um processo de lavagem cerebral, mas também existe a resistência. Houve um grande progresso, pois até recentemente 100 por cento dos refuseniks faziam parte da reserva, pessoas na faixa dos 20, 30 anos. Agora existe um movimento forte de jovens recém-ingressados assinando manifestos e cartas, se recusando a participar do exército de ocupação, e o exército não soube lidar com isso, ficou tão preocupado que determinou que, para cada escola, haveria um coronel responsável por trazer esses jovens para o serviço militar. Renato Pompeu - E pensar que, 25 ou trinta anos atrás, não se podia falar da questão palestina, do direito palestino a um Estado. É um progresso. Nós vimos a opinião pública mudar. Antes, o governo incentivava a ocupação. Isso foi muito enfatizado por Ariel Sharon. Depois, com a pressão dos movimentos, não só o Refusenik começou a mudar a opinião pública. Colaboramos com a mudança da opinião pública empurrando-a contra os assentados e os assentamentos, anulando o discurso anterior, no qual os assentados eram os heróis de Israel. Hoje, a maioria dos israelenses quer o fim das ocupações. Gershon Knispel - É hora de começar um diálogo com o Hamas, mas é o tipo da coisa que não se podia falar a respeito porque o governo fabricou o Hamas. A sociedade israelense é uma sociedade religiosa. Mas a maioria das pessoas na sociedade israelense não é. O que existe é que certas coisas são sagradas e não se ataca o sagrado. Atacar o exército é sacrilégio e é o que fazemos. Atacamos o que o exército faz, por isso as pessoas não entendem. Como é possível alguém fazer isso? Amos Oz (escritor israelita e co-fundador do movimento pacifista Paz Agora) é muito menos radical do que somos. Imagine, afirmamos que é necessário conversar com o Hamas! É como questionar os milagres da fé católica. Não se deveria questionar isso. Mas questionamos, pois as pessoas estão no campo, têm armas na mão e têm poder. O que interessa nisso tudo é haver o diálogo. Renato Pompeu - Você disse que o movimento refusenik tem um ponto positivo na cultura israelense, mas tudo indica que na próxima eleição deverá ser eleito um governo belicista. Como você explica essa contradição? É realmente uma contradição porque, ao mesmo tempo que as pessoas acreditam que as ocupações devem acabar, elas são pessimistas, com uma visão de pouca esperança para o futuro. E, também, o governo de Israel demonstra sua indisposição para conversar a respeito do assunto. Queremos diálogo com os sírios, com os palestinos. Yasser Arafat morreu, Abu Mazen é fraco, com quem então podemos falar? As pessoas podem até votar na direita, mas, com essa divisão de personalidade do Estado de Israel, uma eleição pode significar muito pouco. Quer dizer, significa muito, como exercício democrático, mas muito pouco como agente de mudança. Então, o que é mais importante? São as ações e as pressões que movimentos como o nosso exercem sobre a opinião pública, que a conduz a uma certa direção. Não somos filiados a um partido político, bem como a maioria dos movimentos também não é. Age-se livremente e, assim, esperamos que nossas idéias e ações funcionem. Cylene Dworzak - Na sua opinião, qual seria a melhor maneira de acabar com a ocupação? É muito difícil dizer como serão as coisas no futuro. Sabemos que o movimento Refusenik tem uma influência, com base no caso dos pilotos, por exemplo. Sharon havia tomado uma decisão em uma semana e, após o caso da carta dos pilotos se recusando a atacar fora de Israel, a decisão mudou completamente, com a retirada das tropas de Gaza. E ele disse: “Essa é minha posição agora”. Ele sempre esteve muito atento às forças armadas. Como a força aérea, que é a elite das forças armadas, se contrapôs a ele, ele percebeu que deveria fazer algo. Então veja só: até um homem como Sharon pôde mudar de posição em algumas circunstâncias, então fica muito difícil prever. Não existe fórmula. Nós, do movimento, continuaremos com a pressão, que é o nosso trabalho. *Tradução do inglês: Marcello De Paschoal.