"Na peça, todas as mulheres expõem o amor e a vontade da paz, de uma maneira ou de outra"

Seg, 02/10/2006 - 00:00
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ICARABE: Que tipo de adaptação você fez dentro da peça? CLARISSE: Primeiro, fiz a tradução na íntegra. Depois, tive que aparar algumas arestas. Nada dentro da peça é ficção. As pessoas apresentadas, todas as mulheres, a Heather conheceu-as, esteve com elas. Mas há alguns fatos, vamos chamar de jornalísticos, como por exemplo a prisão de Saddam Hussein, ou então o escândalo daquela tenente inglesa que sinalizava positivo com o dedo enquanto tinha um iraquiano na coleira, são coisas que já estão mais do que discutidas, não tem impacto nenhum, já foram mostradas. Não tinha sentido mais colocar isso, foi uma coisa que já gastou. Então essas coisas tive que adaptar, tirei esses dados mais jornalísticos que já foram esmiuçados. ICARABE: Você então atualizou a peça, tirou coisas que você acreditava que faziam sentido dois anos atrás, mas já não fazem mais ? CLARISSE: Exatamente. Acho que ficava uma ilustração absolutamente ultrapassada. E é só em uma personagem, uma intelectual exilada em Londres. Ela narra uma série de acontecimentos. Ela é radicalmente contra o Saddam. O personagem dela é absolutamente político, e foi ela que mais sofreu, que mais tive que mexer. ICARABE: Você tem ligações familiares com o mundo árabe, certo? CLARISSE: Sou neta de libaneses. Minha avó morreu sem falar o português direito, falava o árabe e falava o português com um sotaque muito forte. Em certo momento, fui ao Líbano conhecer minha família. ICARABE: Em que ano? CLARISSE: Foi nos anos 70, antes da guerra civil. Então há uma ligação porque sou neta de árabes. ICARABE: Como foi mergulhar no mundo dessas mulheres árabes? Que tipo de aprendizado você tirou dessa experiência, ainda mais quando se trata de um assunto que é tão estereotipado no mundo ocidental? CLARISSE: Exatamente, é um assunto muito estereotipado. E acho que foi disso que a Heather conseguiu fugir. É maravilhoso. Porque se você pegar essas nove mulheres, ali você encontrará os mistérios delas, as almas delas. As pessoas têm certos tipos de preconceito, e falei que se a peça tivesse algum tipo de preconceito, jamais faria. Um dos motivos para montar essa peça é que ela dá a oportunidade não só para a atriz explorar a coisa teatral, mas para a cidadã também, pois ela é uma tomada de posição. E é uma tomada de posição belíssima porque através dessas mulheres você descobre como elas amam, como elas lidam com os filhos, esse universo todo que supostamente é um mistério, e a Heather expõe com naturalidade e beleza. A peça literalmente é sobre a paz. Todas as mulheres expõem o amor e a vontade da paz, de uma maneira ou de outra. ICARABE: Ela consegue dar voz a essas mulheres de forma que elas não sejam diminuídas, que não percam sua força como mulheres? CLARISSE: Não! São nove monstros. ICARABE: Pergunto por que geralmente a idéia que se faz da mulher árabe é aquela da dominada... CLARISSE: Sim, da mulher submissa, sofrida. Não, a força delas é uma coisa que te derruba. Quando vou fazer o espetáculo, eu passo por todo o processo, me aqueço fisicamente, vocalmente, mas sempre digo para o diretor, é impressionante, quando subo no palco, elas me pegam pela mão, porque a força desses personagens, dessas mulheres, é uma coisa absurda. Teve uma moça que depois do espetáculo em Santo André veio a mim e disse: ‘queria saber onde eu entro nisso?’. Ela me disse que nós, ocidentais, nós achamos tão fortes, tão cheias de liberdade, e de repente ela vê essas mulheres. ICARABE: Você pegou ou enxergou algo da sua avó ou de sua origem árabe? CLARISSE: Não. Da minha avó, lembro que ela brincava muito, batia no pulso e dizia:‘Fia...’, e ela dizia ‘fia’ porque ela tinha chegado do Líbano e foi morar no interior. E o que era engraçado é que ela tinha um sotaque português caipira, então era uma zona. E ela batia assim no pulso e dizia ‘Fia, sangue não é água’, quando alguém discutia sobre alguma coisa. Então, quando faço essas mulheres, lembro dela falando ‘Fia, sangue não é água’, que remete a mim a força, a força que ela tinha como mulher, mãe de dezoito filhos, com meu avô mascate, e eles criaram uma bela história. Esse exemplo e essa frase, agora, fazem sentido para mim. ICARABE: Os noticiários que chegaram do Lìbano durante os ataques de Israel, e mesmo a realidade caótica que o Iraque vive hoje, atingem de alguma forma sua atuação? CLARISSE: Talvez atinge de forma que, seja lá ou seja aqui, sou contra qualquer tipo de guerra. E é claro que quando soube de Baalbeck, que destruíram tudo aquilo, lembrei de quando estive lá e daquela beleza que eu vi. Foi uma sensação ruim, mas acho que as personagens estão lá e independem do que acontece. Mas óbvio que as notícias te afetam e isso faz com que você suba no palco com mais energia. ICARABE: A peça não é política, mas a leitura que as pessoas fazem de alguma forma é política? Isso é inevitável pelo contexto da peça? CLARISSE: As pessoas que falam comigo vêm absurdamente emocionados e encantados com a peça. Acabei de encontrar no elevador um senhor aqui do prédio, vi ele nesse instante, e ele me perguntou se eu tenho com meus filhos a força que aquelas mulheres têm. Ele acabou comigo com essa pergunta. Que força? A força interior. Recebi um email de uma mulher ontem que se colocava radicalmente contra o que acontecia entre Palestina e Israel, e ela achou isso na peça, em um plano qualquer, mas aí foi da cabeça dela, porque a peça não chega perto disso, não fala contra povo nenhum, só da alma dessas mulheres. ICARABE: Você acredita que através dessa peça, contando a experiência dessas mulheres, é possível criar uma confluência de culturas, ou seja, aproximar experiências e destruir distâncias e indiferenças? CLARISSE: Eu adoraria fazer isso. Eu tinha uma idéia, mas infelizmente nós levantamos esse projeto sem patrocínio algum, o que me impediu de dar o porte que eu gostaria que ela tivesse. Gostaria de ter feito estudos do mundo árabe, ler reportagens, matérias e livros. Quem deu o título para apeça foi uma jornalista americana, a Geraldine Brooks, que foi para lá e fez uma reportagem registrada nesse livro. A Heather se inspirou um pouco nesse livro. Minha idéia era fazer um lado jornalístico, com matérias e baseado em fontes, mas para isso você precisa ter uma retaguarada que eu não tive. Não fazer apenas o espetáculo, mas uma ponte, e isso eu lamento.