Shahrazad fala português

Qua, 18/05/2005 - 00:00
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O professor, em entrevista ao ICAarabe, entre outras coisas, fala das dificuldades que teve na tradução e do contexto histórico em que se insere a obra no mundo árabe. Além disso, analisa a relação, dentro da obra, entre o conteúdo, muitas vezes erótico, com a religião islâmica, atual e da época em que foi consolidada a obra. ICArabe: Quais foram as principais dificuldades para fazer a tradução? Mamede Jarouche: A linguagem coloquial que era usada na época. Você não guarda mais registro, os dicionários não preservaram o sentido daquelas coisas. Então a principal dificuldade foi essa, a linguagem do livro, meio antiga, com termos em desuso, que a gente não consegue mais ter noção do que seja hoje. I: E das edições impressas que você usou, que tipo de qualidades foram incorporadas e quais defeitos você procurou evitar? MJ: Em geral a tendência da edição impressa era rebuscar a linguagem, com exceção do Muhsin Mahdi, que é um pesquisador, um dos maiores conhecedores do assunto. Então, um trecho, por exemplo, que esteja em dialetal no manuscrito, na edição impressa ele fica numa linguagem mais rebuscada. Outra é a tendência às vezes de resumir. Na edição impressa, há a tendência de fazer um resumão, diminuindo algumas vezes o texto. I: No começo do livro, há uma introdução explicativa de 24 páginas feita por você. Que tipo de foco você buscou fazer nessa introdução? MJ: Procurei tentar remontar a historicidade do livro. Ao invés de pensar que se trata de uma obra universal, feita em qualquer tempo, por qualquer pessoa, em qualquer língua, eu tentei pensar que ele é dotado de uma historicidade própria, ainda que problemática, até porque você não tem muitos documentos a respeito. Mas tentei, com base nos dados que temos hoje, resgatar a historicidade do livro. I: Mas você fala determinado momento de uma crença de uma parte da crítica que fala do livro como “se fosse elaborado por centenas de mãos, em dezenas de idiomas, em muitíssimos tempos e lugares, que pode ser produção de todos e por isso mesmo de ninguém”. O que quis dizer com isso? MJ: Isso é uma crítica que eu faço a certas análises e posturas que tentam ver o livro como um grande universal, arquétipo de tudo, ou da psicologia, ou da psicanálise, ou da antropologia. Por exemplo, na questão da autoria, dizem assim, ‘não tem autor’, mas espera aí. Não tem autor em que sentido? Não tem autor no sentido moderno, no autor pensado como uma individualidade que se expressa num texto. Sim, nesse sentido não tem autor, porque essa noção de autoria é romântica, do século XIX. Mas tem que ter alguém que reuniu e escreveu isso, e alguns casos adaptou de outras fontes. Aí é lógico que teve um autor. Se você diz que não tem autor, parece que você tinha um maço de papel em branco no armário da sua casa, um dia você abriu e aquilo estava escrito e As Mil e Uma Noites estavam feitas. Isso é um pensamento mágico e não dá para aceitar isso. I: O texto tem uma origem persa, e depois ganhou suas características que o inserem na cultura árabe. E em qual contexto histórico o livro se insere no mundo árabe e como ele se diferencia dessa versão persa? MJ: Do texto persa a gente sabe muito pouco. Os autores falam num livro chamado Hazar Afsana, mas a gente não sabe direito o que é esse livro, que significa mil fábulas, mil histórias. Tem o resumo dele que não corresponde ao que é o livro tal como a gente conhece hoje. Sobre a versão árabe, a elaboração mais antiga que chegou inteira até nós é do século XIII. Quer dizer, o século XIII foi terrível, foi o século que o califado abácida foi destruído, foi o século das invasões mongóis. Foi um período devastador nesse sentido, teve muita guerra. Teve a aliança entre os cruzados, que vinham do Ocidente, e os mongóis contra o Islão. Houve um certo momento em que eles pensaram em fazer uma aliança para destruir o islamismo. Então acho que é nessa situação que o livro toma a forma que a gente conhece hoje. I: E como isso se reflete nas histórias? MJ: Eu acho que As Mil e Uma Noites, apesar da comicidade, tem um tom meio desenganado. Acho que a idéia do fracasso permeia muito as páginas. Apesar do tom cômico, porque eu acho que ele é antes de tudo entretenimento. Mas tem isso, acho que a própria mutilação, é comum na leitura do livro ir topando com personagens que sofreram algum tipo de perda, a idéia de uma perda que é irreversível. Isso de alguma maneira refrata alguma situação de desengano ali vivida naquele mundo naquele período. I: Outro ponto analisado na sua introdução é a diferença entre as fábulas e o discurso histórico, este último muito mais valorizado na administração do poder. Mas você diz que no livro todos os outros estilos se subordinam à fábula. A fábula comandaria os outros estilos? MJ: Eu disse isso porque tem narrativas ali que pertenciam a obras do gênero histórico que são introduzidas nas Mil e Uma Noites. Então, você introduz um texto que, em princípio, pertenceria ao gênero histórico, em um livro que é um gênero de fábulas, então de certa maneira você faz a história se subordinar à fábula, pois é a fábula que narra a história, deformando-a inclusive. Então você tem deslocamentos temporais muito curiosos. Por exemplo, determinado texto que no livro ocorre no século XII, nas Mil e Uma Noites ele é retardado para o século IX ou X. Outras que se aconteceram no X, o texto passa para o XII. I: O texto das Mil e Uma Noites começa no seu primeiro parágrafo com uma louvação a Deus, evidenciando um caráter religioso. Mas o interior do livro contém histórias sensuais, sexuais muitas vezes. Não haveria oposição e conflito entre essas duas idéias? MJ: Isso é um preconceito contemporâneo. Para os muçulmanos essa questão não se colocava como se coloca hoje, esse moralismo sórdido que existe. Por exemplo, você tem autores muçulmanos antigos, dos séculos IX, X e XI, que escreveram tratados sobre sexo. Mas nem por isso eles eram heréticos ou estavam blasfemando. Não há essa separação, essa oposição, ou seja, se você é muçulmano você não pode falar de sexo. Isso é coisa dos fundamentalistas que hoje praticam o islamismo. Esses sheiks tentam passar essa imagem do Islão. O que é o Islão? Basicamente o Islão significa não falar em sexo. Isso é falso. Você pega tratados sexuais da época e não há isso. Vou ler um trecho para você. É do livro “O Jardim Perfumado no Passeio do Pensamento”. É um tratado muito conhecido do século XI ou XII, que começa exatamente assim: “Louvores a Deus, que fez o grande prazer dos homens na vagina das mulheres e fez o prazer das mulheres no pênis dos homens. Então a vagina não tem descanso e nem se acalma, senão quando é penetrada pelo pênis, e o pênis não se acalma senão com a vagina”. O autor deste texto não é alguém que está rompendo com o islamismo. É um texto que ele dedica a um sultão, no qual vai discorrer como o sexo é bom, como a prática sexual é boa. Como o homem deve agir para dar prazer à mulher e como a mulher deve agir para dar prazer ao homem. Então veja, ele não é um libertino ateu, mas um autor muçulmano. I: Mas esse tipo de visão não seria exclusividade de correntes islâmicas fundamentalistas. Poderia ser a visão de correntes cristãs? MJ: Ah, sim. Veja, estou falando como uma pessoa que não é estudiosa de religião. Mas o Islã, acho que foi muito mais liberal no que tange a sexo do que o cristianismo. Você pega, por exemplo, o discurso dos libertinos do século XVIII, pensa em Marquês de Sade. O que acontece ali é que a discussão de sexo está muito ligada ao ateísmo, à perversidade, é como se uma coisa impedisse a outra. No Islão não. No contexto do Islão, pelo menos no século XII e XIII, o que você tem é um discurso sexual que não é anti-islâmico, como o discurso libertino é anti-cristão. É curioso isso. I: Em determinado momento de sua introdução você diz que “o texto mileumanoitesco geme mais e melhor do que fariam quaisquer amantes ou moribundos jamais o fariam”. Em que sentido usou essa frase? MJ: Acho que usei a expressão moribundo pensando na idéia de que o mundo árabe tem sofrido contínuas devastações, e pelo fato de estar destruído sempre, ao invés de estar morto, ele está só moribundo. Apesar de ser um morto, ele ainda fala. Um dos sinais de que ele ainda fala é essa repercussão que o livro tem. As Mil e Uma Noites é um texto que as pessoas consomem, hoje, no nosso tempo. Lêem, se interessam por ele, isso é um dado curioso, como o gemer desse moribundo, como ele ainda nos toca e como ainda nos interessa. I: E a interpretação aberta que o livro tem ao redor do mundo reforçaria a idéia daquilo que Edward Said chamava de orientalismo? MJ: A obra dele é importante e deve ser lida, mas eu não concordo quando ele faz uma condenação cabal de toda a prática orientalista, como um fracasso moral, humano, ético. Eu não concordo com essa avaliação. Mas veja, sem dúvida muitas coisas funcionam na base do estereótipo, e muitas pessoas pensam As Mil e Uma Noites, no ocidente principalmente, como um texto que é o reflexo de um real mundo árabe. É uma postura equivocada, óbvio. Porque, na verdade, mesmo no mundo árabe, ele é um texto fantástico, quer dizer, não existe nenhuma naturalidade em tapete voador, cabeça cortada falando, enfim, ele é um texto fantástico também no que tange à cultura árabe. Então claro que existe, as pessoas se referem ao mundo árabe como o mundo das Mil e Uma Noites, mil e um negócios, como se falou na cúpula.