Artigo: Desmistificando o Islã

Qui, 15/12/2016 - 10:25
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O Islã não é ocidental, mas não seria justo considerá-lo tão somente oriental. Estranho ao mundo genuinamente moderno, para quem o conhece, ele é sobremaneira adaptado às condições nas quais vivemos. O Ocidente na verdade jamais conheceu o Islã. Desde quando se percebeu que ele aparecera para o mundo, aqueles mesmos que não se deram ao trabalho de conhecê-lo, não pararam de caluniá-lo e de desdenhá-lo, buscando razões para combatê-lo e dominá-lo. Como ocorreu com o Orientalismo em geral, o Islã foi reconcebido no Ocidente como queriam os estudiosos e não como ele é na realidade.

As deformações dadas ao Islã foram grosseiras e, lamentavelmente, perduram. Muitos são no Ocidente, e entre nós no Brasil, que reduzem o Islã a poucas noções, entre as quais: fanatismo, fatalismo, poligamia. 

Há certamente as exceções entre os mais cultos que têm ideias menos aberrantes sobre o Islã, mas continuam sendo raros aqueles que sabem que esta palavra significa simplesmente “submissão a Deus” e que Allah não é o deus dos muçulmanos quando, na realidade, Allah é a palavra árabe para o Deus de muçulmanos, cristãos e judeus. Para um cristão árabe, pertencente a qualquer igreja, oriental ou ocidental, é a Allah que no idioma árabe eles se referem a Deus em suas orações. No entanto, é assim que se criou uma distinção até com o nome de Deus, como se os muçulmanos tivessem um Deus que não aquele que eles têm em comum com os adeptos das demais religiões monoteístas

 
Procurando não fugir do que se pretende aqui, que é explanar alguns poucos pontos deturpados ou incompreendidos sobre o Islã, quer no Ocidente em geral, quer no Brasil também, passamos esclarecer certas dúvidas.

A acusação de fanatismo, animação por zelo cego e intransigente pelos muçulmanos em relação a sua religião compreende principalmente a afirmação de que o Islã é a “religião da espada” e do “jihad”. 

A noção do Islã se expandindo pela espada perdeu sua força e foi abandonada desde quando estudos críticos das fontes de informações mostraram que os muçulmanos vencedores não deixaram aos derrotados idólatras a alternativa de aceitar a sua fé ou serem exterminados, mas deve ser sublinhado que esta regra não se aplica e nunca existiu como regra, segundo manda o Corão. Vale lembrar que os Povos do Livro, os judeus e os cristãos, quando a Península Ibérica foi ocupada pelos muçulmanos, foram tratados da “melhor maneira”, como manda o Corão, contrariando o tratamento que os Cristãos deram aos muçulmanos e judeus, quando reocuparam a Andalus (como era e ainda é conhecida a Ibéria pelos árabes). Aos não cristãos foram dadas escolhas cruéis: a conversão ao cristianismo, serem queimados nas fogueiras ou prazo curto para que deixassem a terra reconquistada. 

O jihad é erroneamente interpretado como “guerra santa”, o que não corresponde à realidade quando se sabe que o termo significa para o muçulmano simplesmente sua luta menor (a guerra) ou sua luta maior (o domínio de si mesmo). Estes são os reais significados do jihad. Aos detratores do Islã só lhes restou, por ignorância ou maldade, diante do milagre de que em apenas um século a nova religião estendeu o seu domínio, da China ao Sul da França, atribuir ao jihad outro sentido contrário também à verdade histórica. 

Se jihad não é “guerra santa” o que então vem a ser? Jihad (do árabe: esforço) também se costuma enunciar como “jihad fi sabil Illah” (esforço pelo caminho de Deus) e literalmente significa esforço ou luta, em várias formas – interna e externa – e graus, sendo a de guerra a mais extrema. Em sua forma interior, jihad é a luta do muçulmano consigo mesmo praticando a disciplina moral e prometendo continuar no compromisso com o Islã. Já o jihad externo é aquele que tem interessado à crônica. O termo jihad tem sido usado com maior frequência para falar de luta armada dos muçulmanos contra os infiéis, em suas missões para fazer expandir o Islã ou para reagir a um perigo contra a Religião.  Há várias menções ao jihad no Corão tais como: “E, quando os meses sagrados passarem, matai os idólatras, onde quer que os encontreis, e apanhai-os e sediai-os, e ficai a sua espreita, onde quer que estejam. Então, se se voltam arrependidos e cumpram a oração e concedem az-zakkah, deixai-lhes livre o caminho. Por certo, Deus é Perdoador, Misericordiador” (Corão 9:5). Note-se que infiéis para o Islã são os idólatras e não os cristãos e os judeus, portadores dos Livros, que devem ser tratados “da melhor forma” conforme determina o Corão e não como se costuma erroneamente acreditar no Ocidente ou ainda pelos muçulmanos que renegaram a Religião e se desviaram do caminho correto, como é o caso dos seguidores do Estado Islâmico. 

A verdade é que sempre que obstáculos ou restrições são postos à liberdade de adorar a Deus, a exemplo de ataques à pessoa muçulmana ou à Umma – a coletividade de muçulmanos – no passado e na atualidade, é considerado dever do crente a luta – o jihad para e até o restabelecimento pleno da condição anterior. Pouco se dá conta, fora do Islã, no Ocidente, que esta é uma forma de jihad, de um esforço coletivo. No entanto, aqueles que interpretam mal a Charia – muçulmanos que a praticam de forma pecadora, como é o caso do Estado Islâmico – e aqueles de fora do Islã que não cansam de interpretar mal os seus mandamentos, só deveriam contar com aquilo que está no Corão e no Hadith e não com ideias e ações infundadas.

É com este espírito de luta pela liberdade que as potências coloniais, através do mundo, encontraram o verdadeiro sentido do jihad, como reação a dominações e ocupações estrangeiras. Vale a pena salientar que é por isto que a França, por exemplo, nunca entendeu a reação argelina à ocupação que durou decênios já que a Argélia praticava o jihad, enquanto a França procurava dominar os argelinos e suas terras. É também o jihad o que praticam os muçulmanos residentes na França contra a discriminação a que estão sujeitos.

Aos judeus e cristãos, entre outros versículos do Corão, e são muitos, há aquele que diz: “E, com efeito, concedemos a Moisés o Livro, e fizemos seguir, depois dele, os Mensageiros. E concedemos a Jesus, Filho de Maria, as evidências e amparamo-lo com o Espírito Santo” (Corão: II:87). Há também um versículo assaz claro na ausência de fanatismo e na prática do jihad como o entendem aqueles que não conhecem o Islã e suas regras que reza: “E não discutais com os seguidores do Livro senão da melhor maneira – exceto os que entre eles, são injustos – e dizei: ‘Cremos no que foi descido para nós e no que fora descido para vós; e nosso Deus e vosso Deus é Um só. E para Ele somos submissos” Corão: XXIX:46. Só aqueles que de propósito ou com um objetivo escuso, podem ver fanatismo religioso em outras palavras do Livro do Islã a respeito de judeus e cristãos e os versículos são a prova quando se lê: “E, por certo, há, dentre os seguidores do Livro, os que creem em Deus, e no que fora descido para eles, sendo humildes para com Deus, não vendendo os sinais de Deus por ínfimo preço. Esses terão seu prêmio junto ao Senhor. Por certo, Deus é Destro no ajuste de contas” (Corão III:199).

Encerremos a discussão em torno do fanatismo e do jihad com uma citação corânica que diz: “E quem luta [pela causa de Deus] apenas luta em benefício de si mesmo. Por certo, Deus é Bastante a Si mesmo prescindindo de toda a humanidade” (Corão: XXIX:6).

O que acabamos de ver pode ser considerado como fanatismo do qual o Islã é acusado inapropriada e injustamente, pelo tratamento que obriga o muçulmano a dar aos judeus e cristãos. Ninguém está autorizado a agir de outra forma, a menos que prefira o pecado da desobediência às regras determinadas pelo Corão, que é a base principal da Charia, a Lei Canônica islâmica que rege a vida religiosa, política, social e individual de toda a Umma. 

 

José Farhat é cientista político, arabista, ex-presidente do ICArabe e atual diretor de Relações Internacionais do Instituto.

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