Um escritor que escava as origens do Brasil

Qui, 17/11/2005 - 00:00
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“As únicas traduções completas que existem dessas poesias são em inglês e francês. Tinham verbos que diferiam muito entre si e isso foi uma das motivações que me fez ver o que estava escrito em árabe. Daí em 1997, fui ao Líbano e comprei todos os livros que eu pude encontrar. Livros também sobre a história pré-islâmica e de etnologia”. Hoje o escritor se dedica a um romance que, segundo ele, “não tem nada a ver com o mundo árabe”. É um romance que trará histórias de adultério do mundo inteiro, “inclusive do mundo árabe, mas de vários outros lugares”, e só deve sair no final de 2006. Já os estudos, Mussa não os deixa de lado. “Agora tenho estudado muito a pré-história do Brasil, sociedades indígenas, língua tupi”. Na entrevista que concedeu ao ICArabe, o escritor fala de seus estudos da poesia pré-islâmica e do processo que deu origem a "O Enigma de Qaf". Lembra também da época que conviveu com seus avós paternos e faz, com base em sua experiência, uma reflexão sobre a vida dos imigrantes sírios e libaneses que chegaram ao país no começo do século XX. ICArabe: Como surgiu a idéia de “O Enigma de Qaf”? Alberto Mussa: A idéia mesmo era de fazer uma brincadeira da diferença do tempo. O cara via uma coisa acontecer e depois revia uma imagem de vinte minutos atrás com uma pequena diferença. A partir disso é que eu fui querer fazer o livro, montar uma história que abrigasse esse tipo de idéia. Depois que eu pensei em situar no mundo árabe, porque eu estava fazendo a tradução dos poemas pré-islâmicos e estava muito envolvido com leituras sobre aquele período, só lia aquilo. ICArabe: Você coloca muitas coisas sobre a parte árabe de sua família no livro. Você procurou contar um pouco da história de sua família com a trama? Mussa: A maioria é ficção, brincadeira. Existem só dois eventos que são efetivamente familiares. Um é a história do meu avô que veio porque minha avó veio. Ele tinha um destino para ele lá no Líbano bem diferente da minha avó. Ela avó era de uma família muito pobre, de criadores de cabra, faziam leite. E quando o pai dela morreu, a família veio toda. Já o meu outro bisavô era dono de um colégio e o meu avô tinha sido preparado para ser professor, mas como era apaixonado pela minha avó, e quando soube que ela vinha, veio atrás. Tem umas mudanças, disse que ele embarcou clandestino em um vapor, mas isso aí já é ficção. Na verdade, ele casou lá às vésperas de vir, e veio. A outra é um livro do meu pai, David realmente, que aparece lá num dos capítulos como filósofo, que quis escrever um livro chamado ‘O diálogo das coisas’, mas nunca escreveu esse livro. Então tem também uma referência a ele, que é esse livro que nunca foi escrito que era o livro perfeito, mas era tão perfeito que nunca foi escrito. ICArabe: Quais as fontes que você buscou para inserir as histórias dos poetas pré-islâmicos? Existe dificuldade de encontrar fontes de pesquisa para saber como era a península naquela época? Mussa: A fonte principal são os próprios poemas que te dão uma idéia com os temas dos poemas. Mas existem fontes indiretas gregas, hebraicas, a Torá tem uma série de referências ao mundo árabe. Não tem claro uma documentação tão precisa como teria o mundo grego ou latino, pois a quantidade de textos é maior. Mas existe um certo conhecimento. Em “O Enigma de Qaf”, o que está ali de coisa real está baseado no que eu li. ICArabe: E o que ali é ficção e o que é realidade baseada nos poemas pré-islâmicos? Mussa: Basicamente é tudo ficção. As coisas que estão mais próximas dos dados históricos são os contos que são relativos aos poetas. Ali eu reproduzi a lenda deles, como é contada pela tradição, só que modificada. Tem um conto lá que é quase inteiro só aspecto histórico, a do poeta Shânfara. A única diferença é que a tal pessoa que chutou o cadáver, ficou infeccionado e morreu é um homem, e ali coloquei como se fosse uma mulher para dar a idéia de que teria sido uma paixão dessa mulher por ele que não foi realizada. Em outros casos, a lenda do Urwa, por exemplo, eu inventei ela toda, não existe na tradição. Mas nessas referências sempre pego um elemento que é da história e vou adulterando para ter o meu efeito, e às vezes isso cria uma ilusão de que as coisas têm uma fundamentação histórica. Então é muito difícil distinguir o que é verdadeiro e o que não é. O leitor fica iludido com esse jogo de verdades e mentiras e não percebe exatamente em que momento entra a ficção. ICArabe: Como surgiu o interesse pelo estudo da poesia pré-islâmica? Mussa: Eu tinha lido esses poemas e não tinha visto nada que fosse comparativamente existente em outras culturas, mesmo do Oriente Médio, ou do Oriente. Fiquei realmente muito impressionado, uma coisa belíssima. Aí fiquei com muita vontade de estudar árabe para poder ler no original. Claro que aí entrou uma motivação pessoal, familiar, porque até então não tinha tido muito contato com a cultura árabe, apesar de meus avós serem vivos, convivi com eles vivos até os 18 anos. Então comecei a estudar sozinho, para poder ler no original, e aí surgiu essa idéia de traduzir isso. Mas isso demorou muito tempo. Comecei em 1996 e acabei em 2004. ICArabe: O que faz dessa poesia única e diferente de outras poesias do Oriente? Mussa: É uma sociedade nômade de criadores de camelos, e toda a poesia que a gente conhece da antiguidade, seja da China ou do Egito, são sempre poesias urbanas, aquelas das cidades, do radical civitas. E a poesia árabe é o único caso clássico de uma sociedade nômade. E que na época não conheciam a escrita, foram escritos um pouco depois com o surgimento do islamismo. Então é o único caso. E é de um tratamento das imagens, as metáforas, a brutalidade da forma a que se refere às guerras é intensa, ela é muito poderosa, ela causa um efeito que surpreende. Em algumas metáforas, ele compara os dedos da mulher a vermes, pelo movimento, esse é um verso que existe. É um tipo de imagem que você não encontra em qualquer lugar, pode ser na China, em qualquer lugar, que são lindas as mãos de uma mulher porque os dedos mexem como vermes. Então, esse tipo de imagem, achei muito original. ICArabe: E como se inserem na cultura árabe esses poemas (muitas vezes de conteúdo sensual) depois do surgimento do islamismo? Mussa: São poemas clássicos para a cultura árabe, porque são modelos de poesia, de heroísmo. Claro que a ideologia que está contida ali é muitas vezes contrária ao islamismo. Muitos desses poetas eram consideradas hereges, pessoas que iam para o inferno. Por exemplo, o Imru al-Qays, que é o mais antigo deles, realmente existe uma tradição de que o profeta Maomé disse que ele seria uma das primeiras pessoas a entrar no inferno. Porque era um cara sensual, que tinha várias mulheres, seduzia as mulheres casadas, ‘esse cara vai para o inferno’. Mas independente desse fato de ser contra o islamismo, não significa que tenham sido tirado do cânone árabe. Eles são estudados na escola. Existe às vezes a idéia sobre o islã, no Ocidente, de que tudo que não era religioso era banido do conhecimento. E não é verdade, esses livros são dados nas escolas, os jovens aprendem. Assim como nós aprendemos o Gregório de Mattos na escola, eles aprendem esses poemas também e acham dificílimo estudar, pois é um tipo de árabe muito difícil. Mas são estudados, são clássicos. Ao lado do Alcorão, esses poemas formam os dois monumentos de fundação do idioma árabe, os dois textos mais antigos que se conhece. ICArabe: Como descendente, antes de seus estudos, você tinha algum contato mais próximo com a cultura árabe? E como você enxerga a permanência da cultura árabe no Brasil, como ela é cultivada pelos descendentes? Mussa: Existe uma quantidade grande de descendentes no Brasil, mas não temos um contato efetivo nem com a cultura árabe, nem com o mundo árabe. Quando você fala em cultura árabe, fala em algumas apresentações de dança do ventre e os restaurantes. Não sei se isso é uma característica da cultura ou se é porque os brasileiros descendentes de árabe talvez sejam um dos imigrantes que mais rapidamente se integraram à sociedade brasileira. E tem um dado interessante, muitos desses descendentes se voltaram para o estudo da língua portuguesa. Tem o Antônio Houaiss, o Said Ali, um gramático, Ivanildo Bechara, o Adriano da Gama Cury, todos são descendentes de libaneses. Uma quantidade enorme, proporcionalmente, de pessoas que se voltaram ao estudo da gramática. ICArabe: Como foi especificamente seu contato com seus avós e a cultura do mundo árabe? Mussa: Só na culinária. A língua não era mantida. Eles falavam entre si em árabe, mas os filhos nunca souberam árabe. Meu pai nunca falou árabe, nem meus tios. E como eles eram cristãos ortodoxos, e não eram muçulmanos, então não tinha a questão da língua. E isso faz uma diferença importante, porque quando você tem uma família muçulmana, a relação com o mundo árabe é mais visceral, porque se ligam a uma religião que tem um livro escrito em árabe, todo um procedimento cultural ligado à religião islâmica. No caso do meu avô, ele era um cristão ortodoxo, como a grande parte desses imigrantes do começo do século passado. E isso facilita muito a integração com o Brasil. Os libaneses são um povo que tem a religião como uma coisa vital, porque a religião faz parte do registro civil no Líbano, você nasce e se quiser mudar de religião tem que ir ao cartório fazer uma declaração de que você mudou de religião porque isso interfere no seu direito político. De acordo com o tipo de religião, você pode ocupar um cargo ou outro. Esses imigrantes cristãos, como meu avô, que vêm ao Brasil, que são ortodoxos, e vêm para um país católico, existia uma igreja diferente, mas você não percebe no dia-a-dia e acaba que os filhos se confundem com a maioria católica e não preservam a religião ortodoxa. Ela é diferente nos rituais, algumas concepções religiosas e dogmas, mas isso não é uma diferença tão grande como é para uma família muçulmana. Então no caso do cristão, essa perda de vinculação com o mundo árabe é muito maior. Tudo bem, ele escuta música árabe, mas isso não é uma atitude direcionada para preservar nos descendentes um gosto daquilo. Então lembro de umas louças, de algumas almofadas, lembro dos livros do meu avô em árabe, ele escrevia muito, era poeta, fazia poesias, lembro dele falando com minha avó em árabe. Ficam essas referências sentimentais, mas elas não se transmitem, porque do lado de cá, os meus pais e meus tios já falavam português, já estavam no mundo brasileiro. A não ser na culinária, que é a coisa que realmente fica. A minha mãe, que não tem nada a ver com árabe, aprendeu a cozinhar com minha avó e faz pratos árabes até hoje. É o que ficou.