Revelações sobre o lado oculto da ocupação na Palestina

Qui, 03/11/2005 - 00:00
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Na entrevista a seguir, o palestino Salah Habboub e o israelense Eyal Sagie falam da situação na região da Palestina e de Israel. Entre outras coisas, relatam as carências e a violência por que passa a população palestina, contam como a educação israelense cria uma cultura de que torna os árabes invisíveis e irrelevantes e desmistificam a mentira de um conflito que, na verdade, não nasce do ódio e intolerância entre as duas populações, mas de interesses políticos e econômicos de Israel e dos Estados Unidos, Para Eyal, a luta contra a ocupação deve ser global e avisa: “Se as esquerdas conseguirem acabar com o abuso de poder na Palestina, nós podemos conseguir conquistas em qualquer outro lugar”. ICArabe: Expliquem o que é a FFIPP e como sua luta se insere na situação da região. Eyal: A idéia da organização é lutar contra a ocupação através dos direitos pela educação, direitos por uma boa educação. A ocupação priva uma população inteira de educação porque as crianças não podem ir à escola, ou porque as escolas se transformaram em bases militares. A ocupação toma todo o dinheiro da economia e mata professores, estudantes e pessoas, e os postos de controle não permitem que possam ir até a universidade e até as escolas e isso é o que estamos tentando lutar contra. Mas não estamos falando só sobre educação. É um movimento de liberdade de expressão, são coisas que vêm junto com a educação. É uma sociedade inteira que não pode funcionar. ICArabe: Gostaria de saber de vocês a importância de realizar eventos em outros países para contar a história na região? Eyal: A academia ainda é forte ao redor do mundo e ainda pode ser de bastante influência. Os estudantes são a melhor fonte para movimentos de paz ou resistência à ocupação. Queremos também fazer declarações que nós, como acadêmicos e estudantes, temos o privilégio de dizer a elas. Em muitos lugares, nós somos privados de nossa posição de poder dizer alguma coisa. Hoje a academia está, lentamente, em Israel e na Palestina, e em outros lugares, nos privando desses lugares em que podemos dizer que isto está errado, por causa disso, disso e disso. E isso é importante, pois somos os futuros advogados, e ensinaremos a lei, ciências sociais, ciências políticas, humanidades e filosofia, todas essas coisas que são tão conectadas ao que a ocupação é hoje. Essa é uma das coisas que a FFIPP está apoiando também. Salah: A respeito disso, a solução da educação depende que espalhemos nossas idéias de um país ao outro, pois os estudantes podem se tornar líderes e pessoas importantes para que possam dizer às pessoas para por um fim à ocupação. ICArabe: Salah, se você pudesse destacar um ponto da luta dos palestinos durante todo esse período da ocupação, o que diria aos estudantes? Salah: Desde 1948 até agora, nós fomos bem-sucedidos, como povo palestino, a manter nossa identidade e fazer com que os objetivos israelenses falhassem. Eles esperavam destruir nossa identidade, nossa infra-estrutura, fazer com que as pessoas ao redor do mundo esquecessem o povo palestino, o sofrimento e a dor que essa ocupação traz. Queriam que as pessoas esquecessem os prisioneiros, pois ainda cerca de oito mil deles ainda estão nas prisões israelenses. Eles têm saudade de seus filhos e mulheres, muitos deles passaram mais de 20 ou 25 anos na prisão. ICArabe: E quais são hoje, mesmo com a saída da Faixa de Gaza, as principais dificuldades de infra-estrutura e do cotidiano dos palestinos? Mais especificamente falando dos prisioneiros palestinos, que é o departamento no qual você trabalha na Autoridade Palestina? Salah: Nós não podemos ir de Ramallah a Jenin (interior da Cisjordânia) sem passar pelos postos de controle, sem que os soldados israelenses chequem nossas identidades. Muitos estudantes são presos no caminho de suas casas às universidades. Às vezes, os soldados invadem as universidades, tiram os estudantes de suas classes. Também invadem as escolas, destroem as salas e coisas dentro das classes. Eles prendem estudantes e as famílias não sabem nada sobre as prisões ou centros de investigação, e se eles estão vivos ou não. Outro problema para os estudantes é que, por exemplo, muitos deles vêm de Gaza para estudar na Cisjordânia, na Universidade de Birzeit, que é muito de perto de Ramallah de carro. Quando estes estudantes são permitidos de ir de Gaza até a Cisjordânia para estudar, eles não podem voltar e visitar a família, como qualquer estudante em outras sociedades faria, principalmente no final do semestre. Se voltar, talvez não ganhasse outra permissão para voltar à Cisjordânia. Então muitos deles passam mais de dez anos em Ramallah e não voltam para ver suas famílias em Gaza. ICArabe: Vocês dois, aqui no Brasil, como um palestino e israelense que convivem muito bem, provavelmente não dão a impressão correta do que é a relação entre os dois povos na região. Existe uma convivência mais próxima entre israelenses e palestinos na região? Eyal: Claro que para mim é mais do que fácil conviver com Salah, é mais fácil que conviver com a maioria dos judeus israelenses que têm diferentes opiniões e que começam a categorizar um ao outro. Mas uma das idéias para que a ocupação continue é exatamente separando as duas populações, separar qualquer ligação entre elas. Até alguns anos atrás, havia uma forte ligação econômica, e você pode até criticar a maneira pela qual fizeram isso, mas judeus foram até as vilas palestinas na Cisjordânia e ajudaram a economia deles, mesmo que fosse uma relação desigual, mas ainda assim havia ligações econômicas que ajudaram a sociedade palestina. Isso criou laços pessoais e as pessoas ficaram amigas e se visitavam em Israel e na Palestina. Mas hoje a coisa mais importante é dividir as populações para que se possa criar, em Israel, essa imagem dos palestinos como pessoas que não querem paz, que não querem viver junto, como uma constante ameaça para a sociedade israelense. E não há maneira para que os israelenses saibam se isso é verdade ou não, pois sempre estão com medo de ir aos territórios, e nem passa pela cabeça deles ir aos territórios ocupados e conhecer palestinos, ver se a propaganda sobre eles é verdade ou não. Há um constante medo e sentimento de ameaça. Esse é o combustível da ocupação, o ódio, o medo, o não conhecer o outro, essas são as coisas que fazem com que a ocupação continue, pois assim não há resistência, outras opiniões. E claro que a sociedade palestina está fazendo a mesma coisa, pois os palestinos pararam de ver os israelenses como seres humanos, mas começaram a vê-los como soldados, como pessoas com armas, que são violentas, que destroem suas casas, sua economia, que não permitem que suas crianças cresçam e que não permitem que sua sociedade se desenvolva de modo algum. ICArabe: Como se dá esse mecanismo dentro de Israel? Eyal: Lá, você passa por doze anos do sistema de educação onde é ensinado história e geografia, mas uma história que nos ensina que o país estava vazio, que os palestinos eram arruaceiros, que estavam contra nós e nossa segurança desde o começo. Então esses são mitos que são ensinados na escola desde o primeiro dia, a odiar o outro, de ver os árabes de uma maneira racista. E daí há os valores de como é importante ir para o exército, que são muito fortes no sistema educação. Daí, você vai para o exército como soldado e continuam a te educar de uma maneira a não ver e não se importar com o outro lado, de não ver como o outro lado é relevante ou que devesse ser levado em consideração porque a primeira coisa é segurança, é nos defender dessa ameaça, o que permite que se façam coisas horríveis. Eu não acho que sociedade israelense seja pior do que qualquer sociedade no mundo. Acho que é uma boa sociedade e que está pronta para paz, mas o passado que a educação e o exército colocam faz com que isso seja impossível... Salah: O último que Eyal disse sobre o assunto da educação em Israel, posso dizer que é muito difícil de conseguir alguma coisa da sociedade israelense militarizada. Eles vivem com o medo de que os árabes vão pegar eles e destruir seu Estado. Mas por outro lado, no passado você não achava pessoas em Israel como Eyal. Você até encontrava pessoas que não obedeciam ao governo e não serviam no exército. Mas hoje podemos achar por milagre pessoas que apóiam as populações palestinas, que participam de campanhas, com as mulheres, com os prisioneiros, nos postos de controle, que querem destruir essa guerra. Então a educação é importante para reeducar as pessoas a viver uma com o outra, a respeitar um ao outro, como são, seres humanos, e não como judeus, cristãos ou muçulmanos. Mas porque são seres humanos devemos viver um com o outro. Mas o que acontece é que os líderes estão tentando criar uma tensão para levar a região a mais guerras. Sharon, quando visitou a mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém, fez com que sofrêssemos mais anos de guerra. Então, a minoria dentro do governo pode liderar a maioria de sua sociedade para o lado da oposição que eles queiram fazer. Mas acredito que a sociedade israelense acredita na paz real e no fato de dar aos palestinos seus direitos e viver com eles na paz real, e não traindo a população como fez Sharon, com sua visita e, agora, com a saída de Gaza. ICArabe: Qual sua interpretação da saída de Gaza? Salah: Deixe me dizer uma coisa sobre Gaza. Eu considero a saída de Gaza como uma catástrofe. Isso porque os elementos principais para se construir um Estado são ter uma fronteira, ter exército, ter liberdade de se mover de país para país, dentro do seu próprio país, mas nós não achamos essa situação na Faixa de Gaza. Os residentes de lá não podem visitar familiares e parentes na Cisjordânia. Sharon e seu exército antes da saída de Gaza matavam crianças palestinas de perto, da esquina, diretamente, de uma distância curta. Agora eles fazem pelo ar, de foguetes, de longa distância, destroem as escolas. Vivemos num inferno, especialmente em Gaza, não há direitos humanos. Esperamos mudar a situação e encontrar apoio em Israel para acabar com a ocupação de nossa sociedade. ICArabe: Eyal, como você analisa essa oposição criada pelas lideranças de Israel, com a saída de Gaza, por exemplo? Eyal: Há um problema de entendimento sobre a ocupação, não a entendemos muito bem. Chamá-la de ocupação israelense está certo, mas não é o termo exato. Porque a ocupação cria uma mentira. É uma mentira não só criada por Israel, mas também pelos Estados Unidos, e apoiada por todo o mundo. E essa mentira é propagada pelo governo israelense, e não pela sociedade israelense. É uma mentira criada por e para interesses políticos e imperialistas. São os Estados Unidos que estão mentindo, é o governo de Israel que está mentindo, e também é a Autoridade Palestina que mente, Arafat mentia, muitas pessoas mentem e nós vivemos essa mentira da ocupação como se nós estivéssemos lutando um contra o outro. Sharon, Bush, o Hamas e Abbas nos querem fazer acreditar que estamos lutando um contra o outro e isso é uma mentira. Porque nos foi vendida esta imagem de que essa parte do Oriente Médio é um lugar de guerra, como se houvesse uma guerra ocorrendo. Não há guerra acontecendo. Há apenas interesses políticos, geográficos e econômicos, e não só israelenses, mas também dos Estados Unidos em dominar a região. ICArabe: Mas como então as sociedades podem lutar contra a ocupação? Eyal: Concordo com Salah que é importante mostrar a verdadeira e horrível face da ocupação, pois isso também é uma coisa que é escondida de nós e do mundo, os atos horrendos que são justificados na ocupação e o roubo da terra. Mas é importante também ir além disso. Devemos ver como a ocupação é ruim para todos nós. Nós não somos os caras bons que estão ajudando os caras pobres, mas estamos todos no mesmo lugar e situação, Israel e Palestina, e ao redor do mundo. Estão todos sob a mesma falsa idéia do que está acontecendo. E sobre isso podemos agir juntos. Lutar contra a ocupação não é só ajudar alguém passar pelo posto de controle, ajudar um estudante chegar a sua universidade, ajudar uma família a reconstruir sua casa ou fazer com que as pessoas tenham o cuidado de saúde que merecem. As pessoas estão sofrendo e ajudar nas necessidades diárias é uma das coisas mais importantes, mas não é só isso. Você tem que lutar de uma maneira política também. O fato é que os direitos humanos hoje estão muitas vezes nas mãos dos criminosos, dos grandes poderes políticos. Eles tratam dos direitos humanos e da lei internacional de uma maneira relativa. Muitas vezes os direitos humanos são criados onde a situação está. Então, é bom criar essa imagem e esse quadro sobre algo como a ocupação, que é um fato político, com interesses de terra e poder de americanos e israelenses, e cobrir com outro quadro, de guerra e uma crise humanitária. É o que fazem certas campanhas humanitárias, que são parte disso, da ONU, da Europa ou dos Estados Unidos. O que deve existir é uma resistência conjunta no mundo. Cada país deve por pressão sobre seu governo para resistir politicamente e formar uma aliança que acabe com a ocupação e que desafie a dominação de Israel e dos Estados Unidos. Sem isso, a ocupação não acabará. Assim a comunidade internacional deve agir, como ativistas políticos. ICArabe: Uma última pergunta. Como a Autoridade Palestina sofre com a falta de legitimidade, pois ela é uma liderança sem país, sem fronteiras e sem possibilidade de exercer soberania, ou seja, exerce uma soberania fictícia? Até porque as políticas da liderança de Israel têm um impacto muito maior sobre a população palestina do que qualquer decisão da Autoridade Palestina. E outra coisa, como Mahmud Abbas lida com a pressão dos Estados Unidos e de Israel para que desarme grupos de resistência como o Hamas, por exemplo? Salah: Os líderes, e Abbas em especial, representam o povo palestino porque foram eleitos de uma forma democrática, alcançaram o poder pelo voto, são reais líderes. O problema é que a ocupação israelense tenta pressionar nossos líderes a lutarem entre si, principalmente uma luta entre os movimentos do Hamas e o Fatah, o principal círculo da Autoridade Palestina. Então, em vez de nos deixar lidar com nossos problemas, alcançar nossos objetivos e ajudar nosso povo a conseguir mais segurança, mais liberdade, sem interferir nos assuntos internos, eles não fazem isso. Queremos conseguir montar nossa infra-estrutura, mas infelizmente eles não deixam. Desde o começo eles nos fazem lutar um contra o outro, a fazer irmãos inimigos. Eyal: Quanto a isso, é ridículo. O que se vê é exatamente a mentira em ação. Com a desocupação de Gaza, por exemplo, o que Israel e os Estados Unidos dizem aos líderes palestinos é ‘agora nós te damos a chance, agora provem a nós que vocês querem mesmo ter paz e que estão prontos para dar esse passo’. Mesmo que na verdade a sociedade palestina já deu esse passo, nós que não demos. Israel e Estados Unidos, em de apoiar economicamente e politicamente os palestinos, estão destruindo suas instituições e criando uma imagem de Abbas como ilegítimo, ainda sem poder, ainda não representando sua população. E é assim que a mentira da ocupação funciona. No lugar de ajudar a Autoridade Palestina a ganhar seu poder, de se construir, e se tornar uma força política, eles tiram e fazem o que fazem. Não dão os meios para controlar sua sociedade, mas pedem que façam o impossível. Isso tudo porque têm poder, e também o poder da mídia e podem dizer o que querem. Barak, em 2000, dizia a Arafat para fazer o impossível e aceitar a visão americano-israelense, uma solução que era inaceitável. E se ainda assim não aceitasse, diriam que ele não queria a paz. É duro pensar que os que lideram a ocupação lideram a opinião pública e o que pode ser dito a essa opinião pública. A história está de cabeça para baixo.