Dois olhares femininos. As jornalistas Adriana Carranca, brasileira, e Rawan Damen, palestina. Mas sobre o quê? Estariam lá para defender as mulheres árabes e iranianas, mostrar que temos uma visão errada. Ou que de fato toda visão ocidental está certa e são pobres mulheres sem voz e sem vida. Nem um, nem outro. No colóquio “Olhares femininos sobre o Oriente Médio”, mediado por Márcia Camargos, uma profunda discussão social. Adriana Carranca, criadora da exposição “Outono em Cabul” realizada em sua viagem como enviada especial pelo jornal “O Estado de S. Paulo” ao Irã e ao Afeganistão, diz que preferiu “não ir tão preparada, pois iria ver culturas tão distantes que qualquer conhecimento prévio poderia atrapalhar”. Não queria conhecimentos acadêmicos vindos da Inglaterra, por exemplo, originado em salas fechadas longe das ruas. O material jornalístico teria que vir de uma impressão longe de preconceitos. Mas como os pensamentos escondem-se em lugares sobre os quais não temos controle, ela admite em certo ponto que esperava chegar ao Irã e encontrar destruição. “Você desce em Teerã e é um aeroporto supermoderno. Com o tempo, vi que metade da força de trabalho são mulheres, cientistas, médicas e engenheiras. Todas as placas da cidade estão também em inglês”. Nas observações que fez, Adriana decreta: “a culpa não é do islã”. “O principal problema das mulheres nessa região é adquirir direitos civis. A mensagem que fica é que existe muito preconceito em relação ao mundo árabe e ao islã, e a mídia é a grande responsável por isso. Mas a mídia também, e é o que tento fazer, pode aproximar esses mundos e mostrar que não são tão diferentes entre si”. Não há jeito, a questão da mulher encontra-se no limite da criação do que seria o Ocidente e o Oriente, a razão e o islã, a separação do choque de civilizações. De todas, essa é a que insiste em criar a fronteira entre o que é a vida por aqui e a vida por lá, como as tratamos por aqui e como as tratam por lá. Adriana observou que eles têm história e não estão parados no tempo: “No Afeganistão, a burca é pré-islâmica. Falamos porque tornou-se obrigatória, mas era uma vestimenta usada por rainhas que não podiam ser vistas por qualquer um, é um símbolo de status e vemos isso até hoje. Há diferenças de cores por região, há algumas feitas com material mais nobre”. A brasileira observou também que há política: “No Irã, as que usam o xador são as que mais estão de acordo com o governo, mais tradicionais. As reformistas usam véus mais coloridos, usam um pouco mais para trás na cabeça deixando parte dos cabelos à mostra. São perseguidas não por motivos religiosos, e sim por se oporem ao governo de forma política”. Adriana falou sobre o que pensamos aqui. Rawan nos falará de lá. A palestina apresentou slideshow com um dos programas que produziu para a AlJazeera, “Women Pioneers”. A ideia do programa era fazer o retrato de 12 mulheres árabes, em 12 programas de 50 minutos cada, sobre pioneiras em seus campos de atuação profissional. “Eu gosto de criar modelos, pois as populações do mundo árabe gostam de modelos. Mas quando pergunta a eles quem gostariam de ser, vão te dizer o nome de um ator ou de um cantor”. Alguns exemplos. Slide: Inan Moh Ali, egípcia, foi a primeira diretora de drama de seu país. Começou seu trabalho na década de 60, e fez filmes para a TV e o cinema na época pujante da arte no Egito. Slide: Tamam Ali Akhlal, hoje com 69 anos, trabalhando há 50 como pintora. Palestina expulsa de Jaffa, em 1948, hoje região ao redor de TelAviv, viveu a pobreza dos campos de refugiados do Líbano. Seus temas principais são os dramas de seu povo. Tem um famoso quadro sobre o massacre de Gaza. De 1956. Slide: Mariam Chadid, a primeira astrônoma do mundo a fazer pesquisas a partir do Pólo Sul, vem de uma família pobre de Casablanca, Marrocos. “Deixou seus dois filhos temporariamente e pesquisa as estrelas enquanto falamos”. Slide: por fim, Samia Temtamy, egípcia, cientista pioneira no estudo da genética. Graduou-se em 1957 e foi estudar nos Estados Unidos. Trabalhou no John Hopkins. Em 1966, volta ao Egito e monta a estrutura de medicina genética no país. Hoje, ainda exerce suas funções no National Research Center. Faz questão de trabalhar em um órgão público e ignora a possibilidade ed ir para a prática privada. Rawan fez a série para as audiências árabes. Mas como as pessoas de fora da região olham para as mulheres árabes? “Dentro do mundo árabe, não há esse estereótipo, pois todos veem como as mulheres trabalham, como são. Lá, o que acontece é que não olham para a mulher como uma pioneira, como alguém que lidera. Os homens começam e as mulheres seguem. No mundo árabe, não gostam muito dessa ideia de mulheres pioneiras. Bom, fora de lá a imagem é que elas não trabalham, ficam em casa e são oprimidas. Imagino que essa visão que trago é ainda mais nova”. Rawan retoma um ponto citado anteriormente por Adriana e diz que não propriamente sofrem obrigações ou imposições. “A Palestina, o Qatar ou a Jordânia, onde já vivi, são países abertos. Ninguém vai lhe dizer o que fazer e o que vestir. O que existe é que há algumas normas culturais que vêm das famílias, e que as pessoas preferem seguir. Vejo muito mais como uma questão de classe, normas que se enraízam em famílias mais pobres”. Sim, por lá também há luta de classes. A palestina só enxergará uma mudança nas relações entre o que chamamos de Ocidente e Islã, mesmo na era Obama, se de fato houver uma “vontade de interromper a ideia de que há, de um lado, o bem, e, de outro, o mal”. Um primeiro olhar teria que acabar com uma divisão consagrada, a de que teríamos de um lado um mundo democrático e, de outro, não. “Não acredito que os Estados Unidos sejam uma democracia. Em um país onde apenas 30% votam, não há democracia ou escolha democrática. Mas nos países árabes também não há”. A brasileira concorda, deveríamos achar uma forma menos preconceituosa de olhar os países do Oriente Médio. E conta duas histórias para ilustrar seu pensamento, uma que viveu aqui e outra que enxergou lá: “Tem aquela coisa das quatro esposas, de que as mulheres são oprimidas. Em primeiro, vemos coisas parecidas aqui no Brasil, alguns costumes que permanecem no interior, engravidou tem que casar. Meu tio mesmo não deixa a mulher trabalhar. O máximo que ela conseguiu é ir cantar no coral, e ele só não foi junto porque não tem qualquer talento”. A de lá: “Estava nos Emirados Árabes e fui comprar um véu para entrar no Irã. Na loja, encontrei três mulheres, duas irmãs e a segunda esposa do pai delas. Conversando, perguntei se a mãe não ficava chateada. Disseram, ‘não!’. A mãe agora faz o que quer, não precisa dar atenção ao marido, e ele a trata como uma verdadeira rainha. Na verdade, o que acontece nesses países é que o marido, ao casar com outra mulher, deve continuar a sustentar a primeira, que muitas vezes vive na mesma casa. Quando ela casa de novo, ele perde essa obrigação. O que é melhor, viver desprotegida ou em um sistema que protege a mulher? São realidades complexas, não há uma resposta, mas devemos aprender a olhar as coisas com menos preconceito”.