Reformistas frustram expectativas de mudança e poder econômico continua com líderes religiosos

Qui, 22/09/2005 - 10:50
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por Roberto Cattani No debate entre moderados e fundamentalistas que agita o mundo islâmico contemporâneo, o Irã pode ser considerado idealmente um “laboratório de experimentação” da tentativa de adaptar o Islã ao mundo moderno, de ajustar o xiismo, que sempre conviveu com o poder temporal sem nunca exercê-lo, às necessidades de governar um país e de moldar sua sociedade. Neste sentido, “do ponto de vista muçulmano, o Irã exerce até um papel de vanguarda em questões que estão no limiar entre a jurisprudência islâmica e a modernização, estabelecendo um exemplo para o restante do mundo islâmico”, como disse em Davos a então vice-presidente iraniana, Masoumeh Ebtekar, “quando foi que se viu, na história do Islã, um país com um Presidente, um governo, um primeiro-ministro, um Parlamento? Na realidade, 80% do que estamos fazendo não tem precedentes na história do Islã”, disse o Presidente ‘Ali Akbar Hashemi Rafsanjani numa discussão no Parlamento em 1995. Rafsanjani governou de 1989 a 1997. Segundo o historiador iraniano Farian Sabahi, “a Constituição que surgiu da revolução islâmica é mais próxima das teorizações políticas do filósofo iluminista francês Montesquieu (com a separação entre as três funções essenciais do Estado — executivo, legislativo e judiciário) que do califado ou de qualquer formulação política muçulmana do passado ou atual”. A Constituição e o sistema político em vigor mostram claramente como o aiatolá Khomeini, mesmo no auge do poder, quando depois da revolução muita gente o considerava o Mahdi (o salvador prometido para o final dos tempos), não quis instaurar outra ditadura, mesmo religiosa, depois daquela do xá: ele assumiu o papel de velayat-e faqih, Guia Supremo da Revolução, com um poder muito grande, mas instituiu o cargo paralelo de Presidente da República, eleito pelo povo; o Parlamento (também livremente eleito) é considerado a garantia da vontade de Deus, mas o Conselho dos Guardiões da Revolução (algo como um Supremo Tribunal Federal), todos clérigos xiitas conservadores, pode julgar e refutar as leis deliberadas pelo Parlamento, e invalidar a candidatura nas eleições dos políticos considerados excessivamente progressistas. O resultado destas precauções e destas tentativas de equilibrar teocracia e democracia é uma anulação recíproca, com uma tendência inevitável à paralisia política, a nível tanto legislativo quanto executivo. O último governo serve de exemplo: eleito triunfalmente (com 69% dos votos) em fevereiro de 1997 e reeleito em 2001, com a expectativa de uma grande abertura política e social, Mohammad Khatami conclui, em junho de 2005, seus oito anos como Presidente com um balanço lamentável de poucas mudanças significativas e muita decepção por parte dos progressistas. E o risco de uma nova guinada para o lado conservador ocorreu nas últimas eleições, na qual foi eleito Mahmoud Ahmadinejad. Khatami, ainda que sendo ele mesmo clérigo descendente do Profeta, político brilhante e protegido até sua morte por Khomeini, não conseguiu levar adiante praticamente nenhuma das reformas importantes que a sociedade esperava: quando em 2000 o Parlamento aprovou com ampla maioria a nova lei para uma maior liberdade de imprensa, por exemplo, o Conselho dos Guardiões vetou a reforma, com o apoio do Guia Supremo sucessor de Khomeini, Ali Khamenei. Durante esse tempo, muitos colaboradores e partidários de Khatami, entre eles o prefeito da capital Teerã, Gholamhossein Karbashi, profissionais da mídia, intelectuais, professores e membros de Ongs foram presos, espancados ou mortos, mas isto só fez crescer os protestos dos estudantes e dos militantes progressistas. Em ocasião da festa do Mahdi, tivemos ocasião de presenciar uma manifestação de estudantes, com coquetéis molotov e muita pancadaria, nas ruas de Isfahan, a antiga capital em que a oposição ao regime é mais virulenta. Os Pasdaran, os guardas revolucionários muito temidos nos primeiros anos depois da revolução, encarregados na época de fazer respeitar as novas normas, estão agora confinados nos quartéis. Quem faz o “trabalho sujo” são os Basiji (“voluntários”, em Farsi), milícias de jovens recrutadas nas camadas mais pobres da população, sem uniforme a não ser a barba, muito violentas e sem controle oficial. As razões pelos protestos não são só políticas. A renda per capita continua diminuindo a cada ano (hoje está abaixo de 2.000 USD por ano), o desemprego aumenta e um quinto da população, na maioria jovens, está sem trabalho. O Irã poderia ser um país muito rico: produz 3,7 milhões de barris de petróleo por dia, dos quais 2,4 são exportados, e as reservas conhecidas representam 9% do petróleo e 15% do gás natural do total mundial. E ainda exporta o outro ‘ouro negro’, o caviar, tapetes (2 bilhões de dólares por ano) e pistaches. Mesmo com uma população de 76 milhões de pessoas, se houvesse uma redistribuição adequada, todos teriam um nível de vida razoável, e até bom, já que o custo da vida está entre os mais baixos do mundo. Não é o caso. Estima-se que mais de 3 bilhões de dólares sumam todo ano do Irã, rumo à Suíça e aos paraísos fiscais. Em 2002, o aiatolá Jalaluddin Taheri, imã de Isfahan, denunciou sem citar nomes “aqueles que se mantêm no poder graças à fé popular, delinqüentes fascistas que rivalizam para subtrair riquezas ao País”. O regime usa os dólares do petróleo para uma política populista de assistencialismo aos pobres, que representam sua maior base de poder e de votos. As fundações (bonyad) do clero xiita distribuem uma espécie de seguro-desemprego e cestas básicas, constroem casas populares e mantêm hospitais gratuitos para quem não tem seguro saúde. Em compensação, depois da morte de Khomeini elas passaram a operar nos serviços, na indústria e no comércio, e seu faturamento representa hoje quase 40% da economia iraniana. A maior de todas, a bonyad Rezavi, que opera e administra o mausoléu do Imã Reza em Mashhad, o santuário mais importante do Irã, fatura todo ano 15 bilhões de dólares. A Fundação dos Oprimidos emprega 400.000 pessoas e fatura 10 bilhões de dólares, com empresas que vão da Zam-Zam, a Coca-Cola iraniana, até os hotéis Hilton nacionalizados. A Fundação Noor, cujo diretor-presidente é o cunhado do Guia Supremo Ali Khamenei, detém o monopólio das importações de remédios, açúcar e materiais de construção. As fundações, as nacionalizações de muitas empresas e serviços e a estrutura inchada do Estado (incluindo os muitos organismos encarregados do controle social e da repressão) formam uma imensa burocracia que sustenta a elite no poder (formada principalmente pelo clero xiita) e que explora todas as oportunidades, deixando ao povo só as migalhas. É provavelmente esta situação (análoga em muitos aspectos àquela da União Soviética das últimas décadas antes da derrocada), muito mais que a disputa ideológica, que faz que o regime atual “não seja reformável”, como já disse o ex-presidente iraniano Abol Hasan Bani Sadr. Porque as reformas sociais exigidas pelos progressistas colocariam em risco o sistema de interesses, lucros e privilégios que foi urdido e elaborado nos 25 anos de poder. Neste sentido, no Irã como em qualquer lugar do mundo, a ideologia passa a segundo plano perante a ganância. Podemos abonar que Khomeini, assim como Lênin, foi um revolucionário “duro e puro”, que acreditava realmente na possibilidade de um Estado islâmico eqüitativo, humano e temente a Deus. Em comparação com o que está em jogo no Irã do ponto de vista ideológico (dentro do mundo islâmico), estratégico (no Oriente Médio) e econômico, as esperadas reformas sociais e mudanças de costumes parecem até pouca coisa. O resto do mundo olha de forma superficial para a situação iraniana e critica a obrigação do xador, a proibição da música e a censura sobre cinema e literatura, ou elogia as concessões às mulheres e à cultura. Dentro do Irã, estudantes e reformadores aumentam os protestos e fazem cada vez mais passeatas e manifestações, mas carecem de fato de líderes carismáticos, de uma organização forte, de uma proposta política clara que não seja a frustração e a decepção e, mais que tudo, de uma penetração real nas grandes massas. A população, apesar da difusão cada vez maior da Internet na classe média, é manipulada e controlada à vontade pelos conservadores, que detêm o controle total sobre os meios de subsistência e a mídia. A impressão é que não há perspectivas de mudança real, de substância, no Irã a curto e médio prazo. Khatami, que poderia ter sido o Gorbatchev iraniano, não teve a força para sobrepujar um sistema conservador ainda muito poderoso e eficiente, e não há outros líderes progressistas a vista. Se os aiatolás, como de fato querem, conseguirem a bomba atômica, ficará mais remota ainda a possibilidade de uma mudança de regime, e os 26 anos de Revolução Islâmica poderão chegar a 50. * O Irã não faz parte do conjunto de países que forma o mundo árabe. Mas, apesar de a origem desse povo ser principalmente persa, as culturas iraniana e árabe se cruzam em muitos pontos, já que o Irã foi responsável por importantes interações políticas, religiosas e de costumes com países vizinhos, como o Iraque. Interações estas que acabaram por colaborar na forma tomada pela cultura conhecida como árabe. Os assuntos levantados nas discussões culturais iranianas, portanto, têm forte relação com aspectos e costumes do mundo árabe.