Veja a opinião de estudiosos de Dante e de literatura árabe-islâmica

Seg, 02/10/2006 - 00:20
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Por Isabele Somma (colaborou Arturo Hartmann) O debate a respeito da influência da Viagem Noturna islâmica em “A Divina Comédia” gera diferentes opiniões, entre elas há aqueles que preferem colocar essa influência árabe em um segundo plano, quase ignorá-la, outros que aceitam, mas não exageram sua importância, e ainda aqueles que destacam e encontram muitos indícios de que a obra de Alighieri bebeu profundamente da narrativa islâmica. O Icarabe falou com alguns especialistas na obra de Dante e estudiosos de literatura árabe-islâmica. Veja as opiniões. - “Presença árabe é periférica” JEFFREY T. SCHNAPP, autor de “The Transfiguration of History at the Center of Dante’s Paradise” e professor de Literatura Italiana da Universidade de Stanford. “Enquanto não há nenhuma dúvida de que a cultura árabe modelou vigorosamente muitos aspectos da cultura e sociedade medievais, poucos estudiosos hoje aceitam as principais alegações de Asín-Palácios, para não mencionar a dos estudiosos arabistas que seguiram seu rastro. A noção, por exemplo, de que existe algum tipo de ‘modelo’ árabe para a Comédia é intrigante, mas existe pouca ou nenhuma evidência para apoiá-la. Além disso, tal hipótese é estranha considerando o que realmente é o drama central do poema de Dante: como um poeta do século XIII chamado Dante Alighieri segue os passos de (tanto literariamente como figurativamente) e eventualmente sobrepõe seu modelo literário e mestre, o poeta Virgílio? A Comédia é um trabalho estritamente focado na relação entre a modernidade e a antiguidade Greco-Romana em que a presença árabe é periférica.” - “Dante aprendeu todas as tradições para modelar a poética ocidental” GIUSEPPE MAZZOTTA, presidente da Sociedade Dante da América e professor de Literatura Italiana da Universidade de Yale, nos Estados Unidos: “A visão de Asín-Palácios é interessante, mas ele nunca provou sua tese. Eu gosto de acreditar que Dante conseguiu aprender de todas as tradições, inclusive a muçulmana. Foi essa abertura de sua mente e imaginação, esse intelecto poroso, sua fome por absolutos que faz dele o poeta que é, a própria voz da espiritualidade ocidental destinada a modelar a poética do Ocidente”. - “Influência não são ‘empréstimos’ inconfessáveis, mas contestações polêmicas” RONALD L. MARTINEZ, tradutor de “A Divina Comédia” para o inglês e professor de Estudos Italianos da Universidade de Brown, nos Estados Unidos. “As proposições de Asín-Palácios foram bastante mencionadas recentemente já que os estudiosos de Dante têm avaliado a representação do Islã na Divina Comédia em vista dos eventos atuais. Eu partilho a visão dos estudiosos mais novos, de que as indicações sugeridas por Asín-Palácios sem dúvida recomendam mais estudos. Mas o método da tese, que acumula uma grande extensão de textos islâmicos, sendo que a vasta maioria não estava disponível para Dante, e que propõe muitos paralelos que são bastante gerais, não é em última análise muito útil para o avanço da tese em questão. Mais útil para a tese islâmica foi a publicação por Enrico Cerulli (1949) de “Kitab al mi’raj”, ou “Liber scalae machometi”, um relato não-corânico da viagem noturna do profeta para Meca, tanto nas versões francês arcaica e latim, e mesmo o espectro mais amplo de materiais fornecido pela “Collectio toletana”, ou “Coleção Toledana” de textos islâmicos, incluindo o Alcorão, que foram traduzidos por ordem de Pedro, o Venerável, abade de Cluny, no início do século XII, e que foi descoberto pela grande especialista medieval Marie-Therése d’Alverny na Biblioteca de L’Arsenal em Paris. O estudo delas, e de outros textos medievais disponíveis nas línguas européias, tais como o “Liber sarracenorum” do monge franciscano Ricoldo de Monte Croce, escrito por volta de 1300, nos deram uma boa idéia da imagem que Dante poderia ter formado da civilização islâmica e da religião, dados os materiais disponíveis a ele. Nesta perspectiva, há, eu acredito, evidência considerável de que Dante tinha algum conhecimento do “Liber scalae” (tese defendida pela distinta estudiosa de Dante Maria Corti) e que ele faz referências indiretas ao livro no Inferno. Minha própria visão é que tais referências não são ‘empréstimos’ inconfessáveis de uma fonte islâmica mas contestações polêmicas. Por exemplo, alguns dos possíveis empréstimos de Dante consideram a ênfase corânica na lei da retaliação, sendo que o famoso contrappasso (Inferno, capítulo 28, verso 142) de Dante é um exemplo. Em outras palavras, Dante pode ter pensado no Islã como uma religião vingativa, como o sistema que governa o seu próprio inferno. Mas, para Dante, o Inferno é apenas uma parte da visão que inclui o Purgatório e o Paraíso”. - “Poderia haver um fundo que compõe a obra de Dante que teria se originado da literatura popular islâmica” MICHEL SLEIMAN, professor de Língua e Literatura Árabe na USP, poeta, ensaísta e tradutor de poesia. Autor de “A Poesia Árabe-Andaluza: Ibn-Quzmân de Córdova” e “A Literatura Doutrinária na Corte de Avis”. Editor da revista “Tiraz”, publicação do Centro de Estudos Árabes e do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Árabes da USP. “Houve um certo interesse a respeito do assunto quando se discutia a origem da formação da literatura européia e que tipo de influência haveria do islamismo sobre ela. Principalmente na literatura lírica, e aí o papel de Dante nessa literatura. Mas quem levou essa discussão adiante foram os espanhóis, essa discussão foi levada aos árabes por meio desse caminho. Existe uma literatura de cunho popular islâmica, não-oficial, que fala da ascensão do profeta durante a noite, até as esferas celestiais, semelhante ao que Dante fará com Beatriz. O que dizem é que isso teria sido aproveitado. Então, haveria um fundo que compõe a obra de Dante que teria se originado da literatura popular islâmica. Mas o que ele faz é cristianizar essa literatura, ele teria aproveitado a estrutura dos céus que era dada pelo cristianismo. Ele não estava interessado em difundir a cultura islâmica. Tanto que quando ele olha para muçulmanos, como o profeta Muhammad, ele os coloca no inferno”. - “Há evidências de que Dante teve acesso e foi influenciado pela cultura islâmica” HELMI NASR, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP autor de “A Teoria de Asín Palácios sobre a Divina Comédia”. “Asín-Palácios fez um livro no qual mostrou que Dante tirou a maior parte da sua Divina Comédia da cultura islâmica, da viagem que Muhammad fez de Meca para Jerusalém e de Jerusalém ao céu. Haveria muitas cenas na viagem e na subida dele iguais às cenas escritas por Dante. Esse tipo de pensamento causou uma revolução na Europa. As pessoas atacavam Asín por causa de suas teorias. Isso até 1948, 1949. Nessa época, dois estudiosos mostraram através de estudos que Dante poderia sim ter tido acesso à cultura árabe-islâmica. Na Itália, Enrico Cerulli, e na Espanha, outro padre, José Muñoz Cendiño. Os dois mostraram que, na realidade, Dante tinha acesso à cultura islâmica através de três traduções da viagem noturna de Muhammad em três línguas, o francês arcaico, o latim e o espanhol. Assim, mostraram qual foi a fonte pela qual Dante tomou conhecimento da cultura islâmica. O que se dizia na Europa era que Dante não conhecia a língua árabe e nem tinha viajado para um país árabe, então ele não tinha como aprender histórias islâmicas. Agora, com esses dois livros a questão foi bem explicada. O Corão conta que essa viagem foi feita por Muhammad, dada por Deus, para que conhecesse o Paraíso e o Inferno, lugar em que podia ver os castigados, pessoas que falavam mal de outros e tinham suas línguas cortadas com uma tesoura de fogo. Nesses estudos, inclusive, há cenas como essa, detalhadas, que mostram como há narrativas iguais, comuns, na “Divina Comédia” e na cultura islâmica. Em outro exemplo, Dante estava acompanhado de Beatriz e, no caminho, uma velha o chamou. Ele consultou Beatriz e ela falou ‘não, não atenda a ela’ e ela desapareceu. Essa mesma cena na cultura islâmica diz que Muhammad estava subindo com anjo Gabriel ao céu e nesse caminho o diabo, o satanás, o chamou. Muhammad perguntou a Gabriel e o anjo fez uma reza e imediatamente o diabo desapareceu. São cenas muito parecidas, quase iguais. Mas Dante, com muita inteligência, aproveitou muito bem essa influência. Claro, ele aumentou, detalhou camadas do Inferno para colocar um monte de gente. E interessante que ele colocou o profeta Muhammad no nono piso do Inferno.