Artigo: Ascensão e Queda de um Califado

Qua, 08/11/2017 - 15:11

 

O Daesh (acrônimo árabe para: Dawla Islamiya fi il-Iraq wa Asham, em português: Estado Islâmico no Iraque e na Síria), contraria e desafia, na História recente, os preceitos religiosos do Islã consubstanciados particularmente pelo Corão e pelo Hadith. O Daesh é responsável pelas piores atrocidades perpetradas contra civis, indiferentemente de credo, até mesmo e em alguns casos inclusive contra muçulmanos.

Raqqa, a capital de facto do Daesh caiu nas mãos dos membros do Movimento Democrático Sírio, uma organização terrorista apoiada e financiada pelos Estados Unidos que fornecem substanciosa ajuda financeira, armas, munições e consultoria militar em terra. O candidato a combatente nesta organização é incentivado a participar de suas fileiras pelo lucro monetário e, pasmem, por uma menção de que razzia e assédio sexual são tolerados.

Com a ocupação da sede capital do Daesh, a organização criminosa parece se aproximar do esgotamento total, mas o governo legal da Síria e seus aliados sabem e pactuam suas atividades cientes de que não basta cortar o rabo de um ofídio venenoso, sua cabeça tem que ser esmagada e seu ninho destruído e, por esta razão, continuarão perseguindo os mercenários, até que voltem a suas origens.

O completo domínio de Raqqa - cujos habitantes foram condenados a viver sob o comando dos negacionistas do Islã, durante mais de três longos anos - estão lutando agora para conservar sob seu poder bolsos de território no Iraque e na Síria, apesar de estarem cercados por todos os lados. É consenso quase total, em todo o mundo, menos obviamente na Casa Branca, que o colapso do Daesh, nos dois países, não deve demorar. Os Estados Unidos terão mais uma derrota a ser lembrada.

Revendo fontes bastante confiáveis e presentes na região, pintamos a seguir um quadro da ascensão e queda do Daesh e o que é dado esperar para o futuro.

A origem do Daesh é a rapa-do-tacho que sobrou da al-Qaeda no Iraque. Foi do país mesopotâmico que esses derrotados se espalharam através do Oriente Médio, a partir de 2014. Ocuparam a cidade de Fallujah e partes da província de Ramadi, no Iraque e, na Síria, assumiram o controle e ocuparam a cidade de Raqqah, expulsando facções rebeldes contrárias ao governo sírio. Até aqui só encontramos três organizações terroristas lutando entre elas pela posse de regiões sírias e a vítima é tão somente o povo da Síria.

Em junho de 2014, o Daesh ocupou Mussul, a segunda maior cidade do Iraque, de onde seu líder, Abu-Bakr al-Baghadi, declarou a fundação um “califado” instalado à sua imagem. Este fato abalou toda a região com a força de um tremor de terra e temporariamente redesenhou as fronteiras.

Abu-Bakr al-Baghdadi e seus asseclas prometeram justiça, igualdade e uma utopia religiosa islâmica e o que vimos foi reinar o terror nas regiões sob seu domínio. Um exemplo é que o Daesh sistematicamente degolou membros da pequeníssima comunidade Yazidi e sequestrou mulheres e meninas tornando-as escravas de sexo. Jornalistas oriundos de fora da região foram degolados e sítios arqueológicos e culturais foram destruídos, como foi o caso de Palmira.

Além da contratação de mercenários orientais, o Daesh exerceu uma influência sobre os jovens estrangeiros alienados, de todos os horizontes, principalmente da Europa, que atenderam a seu chamado e que penetraram em suas fileiras.

Este recrutamento, no entanto, traria em seu bojo um erro, talvez o maior, do Daesh. O Islã apregoado, que se dizia sunita, não agradou às correntes atuais dos próprios sunitas instruídos ou com poder de mando ou liderança na sociedade. Isto porque a interpretação do Islã proclamado pelo Daesh era rude demais e, ao se espalhar em áreas de maioria sunita, além do Iraque e da Síria, multiplicou a sua desaprovação.

A criação de um “califado”, com determinação de suas fronteiras, Iraque e Síria, facilitou bastante a definição da área a ser combatida. Uma coalizão internacional contra o Daesh logo foi criada, até mesmo entre outros fundamentalistas ou de outras organizações terroristas, o que acabava por enfraquecer a frente contra a Síria legal.

Não resta muito do Daesh. O governo dos Estados Unidos lançou sua campanha de ataques aéreos, no Iraque, em agosto de 2014 e logo o ampliou para a Síria. Os estadunidenses se aliaram a forças do governo iraquiano trabalhando em conjunto com milícias lideradas por xiitas assim como com os curdos iraquianos conhecidos como pershmerga. Na Síria eles também se aliaram com forças curdas locais e com a milícia terrorista Forças Democráticas Sírias.

Com o apoio estadunidense, com dezenas de milhares de ataques aéreos estas forças foram tomando do Daesh fortificação após outra, através do tempo, até culminar com o maior feito deles quando, em julho passado, ocuparam Mussol e sua região, considerada a capital administrativa do Daesh. Mussol era o de menos, pois o importante era sua riqueza em petróleo que era contrabandeado para países vizinhos, principalmente Israel, pra custear o grupo Daesh.

Na Síria foi diferente: os Estados Unidos e seus asseclas de um lado e de outro as forças do governo sírio, apoiados pela Rússia, estão atacando o Daesh em ofensivas simultâneas. Os terroristas já perderam Raqqa e a cidade de Mayadine, no coração da Síria, situada no vale do rio Eufrates, próximo à fronteira sírio-iraquiana foi ocupada pelas forças governamentais sírias. A importância desta vitória síria é grande, pois os falsos islâmicos pretendiam lá se concentrar e manter sua última fortaleza.

Lembremos que aqu também havia uma fonte de financiamento do Daesh e de corrupção: a vitória das forças governamenteais sírias, apoiadas pelos ataques aéreos russos, a retomada de Deir-al-Zour e sua região, rica em petróleo acabou com o roubo de petróleo e seu contrabando.

O Daesh não ocupam mais qualquer cidade ou vila, no norte do Iraque, desde quando as forças iraquianas ocuparam Hawija. O exercito iraquiano está levando quem restou do Daesh para o deserto da província de Anbar, perto da fronteira da Síria, onde os inimigos não poderão contar com nenhuma ajuda externa. Esta operação é coordenada com as forças do governo sírio que está lançando uma ofensiva contra a cidade de Bukamal, nas proximidades da fronteira com o Iraque.

Quem está pagando o preço da derrota do Daesh não é a Casa Branca, é quanto a guerra vem custando, através dos anos, aos tesouros da Síria e do Iraque. Mais importante ainda foi o imenso sofrimento da população síria e iraquiana que foram obrigados a aguentar o jugo brutal da ocupação pelos militantes que se dizem islâmicos.

Cidades outrora ativas foram reduzidas a pó, tanto pelos ataques aéreos quanto pelas batalhas ocorridas muitas vezes de casa em casa. É o caso de Ramadi, Mussul e Raqqa onde as casas foram aniquiladas e para elas se chegar rodovias e pontes terão que ser reconstruídas.

Não é necessário ir lá onde o Daesh queria estabelecer seu “califado” para saber qual o número de mortes ocorridas nestes três anos, basta imaginar que foram dezenas de milhares de civis e militares. O próprio Daesh matou milhares de pessoas, deslocou milhões e encheram a cabeça das crianças com doutrina extremista. Eles precisam mais que nunca de escolas como eles e todos necessitam de hospitais.

O advento do grupo Daesh, as guerras que se seguiram, as alianças que foram necessárias para derrotá-lo prejudicaram tremendamente os relacionamentos políticos e sectários na Síria e no Iraque.

As preocupações com a movimentação dos curdos e seus anseios de independência ultrapassaram os governos do Iraque e da Síria e foram alcançar a Turquia e o Irã, também formados por minorias curdas. Note-se que foi sob a desculpa de combater o Daesh que os curdos iraquianos ocuparam a cidade de Kirkuk, rica em petróleo e só agora o governo iraquiano reverteu a situação e recuperou a região, quebrando, de certa forma a aspiração de independência curda em seu território.

Durante a guerra contra o Daesh, ocorreram tensões entre as etnias árabe e curda e entre xiitas e sunitas, as populações de movimentaram para outras terras e, sob este aspecto, o alcance de uma solução para os problemas poderá resultar em lutas pelo domínio dos espólios do Daesh.

O futuro é certamente incerto e as soluções para os problemas complexos e necessitam de muita sabedoria e amor à Paz.

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Jose Farhat é cientista político, arabista e diretor de Relações Internacionais do Instituto da Cultura Árabe .
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