"A ocupação dos territórios palestinos é simplesmente ilegal ... Sobre isso, não há quem possa dizer o contrário"

Seg, 25/09/2006 - 00:00
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ICARABE: Em primeiro lugar, faço uma pergunta ampla, para delimitar e esclarecer um pouco o conceito de direito internacional. Qual seu campo de ação? Que tipo de julgamento e punição ele pode efetivamente exercer? Ele age sobre países e Estados ou sobre governantes? Ele age em âmbito econômico, em acordos comerciais? A OMC seria considerada um órgão de direito internacional? SALEM NASSER: O direito internacional é basicamente o conjunto de normas e instituições que regulam a sociedade internacional, ou seja, que regulam as relações entre os Estados, entre os países. Qualquer tema que seja relevante para essas relações ou considerado como tal pelos Estados pode ser objeto de regulação pelo direito internacional. As normas e as instituições que tratarão dos diversos temas podem vincular-se ao dirigir-se ao comportamento de alguns Estados ou de todos eles. Assim, por exemplo, a ONU é uma organização internacional com vocação universal, no sentido de que tende a congregar todos os Estados do mundo e no sentido de que cuida dos mais diversos temas das relações internacionais. Entre os temas de que cuida, está a manutenção da paz e da segurança. Sobre esses temas, há normas costumeiras e convencionais - inscritas em tratados - que se vinculam à comunidade dos Estados. Outra organização internacional muito citada é a OMC, que também tende a congregar a maior parte dos Estados, e que lida com as questões relativas ao comércio internacional. Já o Mercosul é uma Organização Internacional regional, com número restrito de Estados participantes, e que cuida igualmente de comércio internacional, mas na esfera regional. As normas do direito internacional são obrigatórias, mas, diferentemente do direito interno, os mecanismos e a força de que dispõe para fazer cumprir suas regras ou sancionar quem as descumpre são menos desenvolvidos. É por essa razão que, quando há violações sistemáticas do direito sem que este consiga responder a isto, as pessoas se perguntam se de fato existe direito internacional ou se é de alguma utilidade. ICARABE: Mas então o direito internacional se aplica quando um Estado se considera injustiçado em determinado assunto, como na questão de segurança ou econômica, e a partir daí existem fóruns que arbitram questões, como a ONU e a OMC? SALEM: As normas, as regras, do direito internacional, cujo objetivo, antes de solucionar conflitos, é simplesmente regular os comportamentos dos Estados, dizer o que devem, o que podem e o que não podem fazer, nascem fundamentalmente de dois modos: ou surgem a partir do comportamento dos Estados durante um certo tempo e passam a ser consideradas por eles como obrigatórias, ou são criadas pelos Estados em acordos entre eles, em tratados. É claro que nem sempre os Estados seguem as normas. Também é possível que haja desacordo sobre a existência das normas e sobre sua interpretação. Nestes casos surgem as controvérsias entre Estados. Para a solução dessas controvérsias, o direito internacional tem suas regras e os Estados criaram, com o passar do tempo, alguns mecanismos para cuidar disso. Ocorre apenas que esses mecanismos são falhos, no sentido de que nem sempre podem ser chamados a agir e nem sempre podem constranger os Estados a obedecer. ICARABE: Israel exerce sua política de segurança, tanto no caso da ocupação na Palestina como nos recente ataques ao Líbano, usando como justificativa a idéia de que “tem o direito de se proteger”. Esse é o discurso de Israel e de quem defende a posição de Israel. Não haveria uma instrumentalização da lei internacional nesse caso, pois Israel pode prender e matar por segurança, mas no caso de ações violentas de grupos organizados armados, como o Hizbollah, esse conceito de “defesa” não se aplica? SALEM: O “direito de defesa” que Israel invoca tem dois sentidos ao menos, e uma grande carga retórica: o primeiro sentido em que é usado refere-se ao direito que os Estados têm, segundo o direito internacional, de legítima defesa quando atacado por outro Estado e, dizem alguns, ainda quando quem ataca não é um Estado. É claro que há circunstâncias em que se pode falar em legítima defesa e há regras que dizem o que se pode fazer e até onde ir em legítima defesa. Assim, ainda que alguém quisesse aceitar que Israel age em legítima defesa contra os palestinos – e isso implicaria no esquecimento de os palestinos estarem sob ocupação israelense - ou quando atacou o Líbano, seria preciso lembrar que quando a desproporção entre o ataque sofrido, se houve, e a resposta é tamanha, cessa qualquer legitimidade da defesa. O outro sentido em que o “direito de defesa” é usado é a tentativa por parte de Israel de nos convencer, como convence a si mesmo e a sua população, que luta permanentemente por sua existência, ameaçada por árabes e muçulmanos. Quanto a grupos armados como o Hizbollah, que não são Estados mas participam de conflitos internacionais, é verdade que o direito internacional contém normas que contemplam o seu comportamento. No entanto, justamente por não serem Estados, sua legitimidade e suas ações são mais facilmente questionadas. O julgamento que o direito faria de cada grupo e de seu comportamento é necessariamente passível de discussão e dificilmente haveria consenso. Enquanto essa discussão não se dá de modo consistente, ficamos reféns dos jogos de retórica e de interesses. Assim, por exemplo, veremos instalar-se a convicção generalizada de que o Hizbollah é um grupo terrorista. Ainda que isto fosse verdade, o grave é que a maioria das pessoas acredita nisso sem saber o que o Hizbollah faz, o que o direito chama de terrorismo, ou porque acreditam no que acreditam. ICARABE: Quando você fala das discussões a respeito de cada comportamento, você quer dizer a definição de regras mais claras para julgar cada situação? Essas discussões ocorreriam em que âmbito, na Assembléia Geral? Existem motivos políticos para que não aconteçam, como o entrave de potências, dos Estados Unidos mais especificamente? SALEM: Quando digo que é passível de discussão aquilo que o direito diria, quero simplesmente dizer que é muito comum a incerteza sobre o que dizem as normas jurídicas e como devem ser interpretadas e que é apenas natural que partes em um conflito sustentem posições opostas quanto às normas que deveriam se aplicar a eles e à sua contenda. Quanto ao tema que nos interessa, digo que a discussão sobre o direito deve ser empreendida seriamente por todos os atores, Estados e Organizações internacionais, especificamente a ONU. Agora, não resta dúvida de que o direito sofre com a influência da política. Até certo ponto, isso é normal, mas é um problema grave quando o jogo de poder afasta totalmente o direito e torna normal aquilo que evidentemente é ilegal. ICARABE: Ainda sobre o Líbano, gostaria que esclarecesse a questão dos soldados seqüestrados. Um soldado israelense foi seqüestrado em Gaza, dois no Líbano e isso desencadeou ações violentas de Israel. Quais seriam os procedimentos a serem seguidos para a libertação dos soldados respeitada a lei internacional? SALEM: É preciso sempre lembrar que há uma real situação de conflito entre Israel e Hezbollah e, por conseguinte, Líbano. Quando o Hezbollah captura dois soldados israelenses e os palestinos capturam um outro, não se há de entender nada se esquecemos o contexto em que isso se dá. Nem um nem outro grupo realiza essas ações por considerar que elas são legais - ainda que, no contexto, considerem que são -, mas sim porque vêem essa captura como um meio de focar seu oponente a, no caso, libertar prisioneiros que mantém em suas prisões. Cada ato violento precisa ser pensado dentro da seqüência de atos. Para analisar a legalidade de cada ato, é preciso analisar também à luz do direito cada um dos demais atos e os comportamentos em geral. Assim, fica difícil pensar a captura dos soldados ou sua libertação, e o julgamento que disso faria o direito, isoladamente. Hoje, a libertação só parece possível pela negociação e troca de prisioneiros, ou pela violência, mas esta parece menos apta a produzir bons resultados. ICARABE: Nos ataques ao Líbano, e no conflito desencadeado a partir desses ataques entre Israel e o Hizbollah, os dados que chegam até nós dizem que morreram, do lado israelense, cerca de 100, 60% soldados de combate e 40% civis inocentes, e do libanês, entre 1100 e 1300 pessoas, sendo 80% civis e 20% os alvos do Hizbollah. A partir desses números, e aqui ignorando a desigual potencialidade de força de ataque entre o exército israelense e o exército do Hizbollah, não haveria uma desproporção de ação de um dos lados? Pela lei internacional, essas mortes de libaneses fora de proporção são aceitáveis? Se não é, que tipo de ação poderia ser feita? SALEM: A diferença nos números mostra várias coisas: primeiramente, a proporção de civis libaneses mortos demonstra que Israel pretendeu punir a população libanesa, especialmente o segmento dos muçulmanos xiitas, e a atacou deliberadamente. Isto constitui violação do direito internacional e ajuda a demonstrar o caráter desproporcional da resposta israelense à captura de seus soldados, assim como ajudam nessa demonstração os ataques à infra-estrutura libanesa e o uso de armas proibidas. Em seguida, a proporção maior de militares entre as baixas israelenses demonstram a capacitação militar do Hizbollah e sua proficiência nesse tipo de combate. É nessas baixas militares que reside uma boa parte das razões para que esse enfrentamento tenha sido considerado uma derrota para Israel e uma correspondente vitória para o Hizbollah. Além disso, é claro, ajudam a repensar a classificação do Hizbollah como grupo terrorista que alveja sobretudo vítimas civis. Quanto ao que poderia ser feito a respeito das violações do direito, alguns canais existem, mas eles estão travados pela política e, especialmente, pela ação dos Estados Unidos. ICARABE: Existe o conceito de “efeito colateral” na lei internacional? Ou seja, a alegação de Israel de que os civis eram fatalidades inevitáveis em uma guerra que buscava na verdade acabar com o Hizbollah? SALEM: “Efeito colateral” é uma expressão cunhada para nos fazer esquecer que estamos falando de civis inocentes mortos. Que o direito tem que lidar com o fato de que civis morrem em guerras, não resta dúvida, mas isto depende das circunstâncias em que essas mortes se dão. A tendência de países ricos ou detentores de tecnologia é a de lutar à distância, evitando a proximidade física do inimigo e as perdas em suas fileiras. Mas isso implica que a guerra se faça por bombardeios maciços em que quem ataca ou não se importa de atingir civis, ou quer fazê-lo de propósito. O modo de nos fazer esquecer que há cadáveres de mulheres, crianças e homens inocentes é a etiqueta do efeito colateral. Por outro lado, entre as baixas israelenses, neste caso, todos, soldados e civis, têm nome e história, e não são colaterais. ICARABE: A Anistia Internacional acusou o Hizbollah de ter cometido crimes de guerra por ter lançado 4000 mísseis em território israelense. Há alguma base legal nessa acusação? SALEM: O Hizbollah é acusado de ter violado as normas do direito da guerra por ter alvejado objetivos civis de forma, segundo a Anistia, indiscriminada. A mesma AI acusou Israel das mesmas violações, apenas em proporção maior, e também de outras como o uso de armas proibidas. Se ambas questões fossem levadas ao direito, a uma corte internacional, ou a qualquer outro foro que pudesse decidir segundo o direito internacional, talvez cada um pudesse ser responsabilizado pelas suas violações. Imagino eu que o Hizbollah teria algumas respostas a dar. Poderia, por exemplo, lembrar que desde o início dos confrontos declarou não querer uma escalada, mas disse que se alvos civis libaneses fossem atingidos, atacaria alvos civis israelenses; que, enquanto duraram os ataques, repetiu diversas vezes que pararia os ataques com mísseis se Israel interrompesse os bombardeios; que, quando Israel prometeu uma parada de 48 horas, o Hizbollah não lançou um único ataque, enquanto Israel continuou os seus. De todo modo, se o direito internacional puder entrar em ação efetivamente, se lhe permitirem isto, que cada um seja julgado pelos seus atos. ICARABE: Como a ocupação de um país, e aqui falo especificamente da ocupação da Palestina por Israel, é vista aos olhos do direito internacional? SALEM: A ocupação dos territórios palestinos é simplesmente ilegal, o confisco de terras palestinas é ilegal, a construção de um muro nos territórios ocupados é ilegal, a instalação de colônias é ilegal. Sobre tudo isso, não há quem possa dizer o contrário. Mas é justamente porque Israel e Estados Unidos se recusam a aceitar essa evidência que parecemos condenados a ver a violência se perpetuar. ICARABE: E quanto ao direito de retorno? Na questão palestina, muito se fala do direito de retorno, ou seja, que os palestinos expulsos em 1948 possam voltar a suas terras que hoje estão em Israel. Israel, por outro lado, deixa claro que não cederá, portanto, não permitirá a volta desses palestinos. Aos olhos do direito internacional, a posição palestina não seria a mais correta? E como poderiam fazer os fóruns internacionais para interceder em favor do “retorno”? SALEM: O problema dos refugiados palestinos é uma das questões centrais do conflito e uma das maiores dificuldades para um acordo. Em princípio, eles deveriam ter seu direito de retorno garantido. As soluções previstas pelas resoluções da ONU implicam esse direito de retorno. Não se pode, no entanto, negar que esse retorno seria um golpe muito forte para Israel que, não abrindo mão de ser um Estado judeu, não pode se permitir ter uma população árabe tão expressiva. Isso para não falar de outros problemas envolvidos, tais como os direitos de propriedade. Do modo como se encaminham as chamadas “negociações”, o mais provável é que os refugiados não possam voltar e, com alguma sorte, recebam alguma compensação. ICARABE: Qual a força de uma resolução da ONU e qual a obrigação de um país cumpri-la? No caso da Síria, ela foi mandada sair do Líbano e teve que cumprir. No Líbano, Israel insiste que o Hizbollah deve ser desarmado e, nesses últimos ataques, não se esquivou de dizer que um dos objetivos era desarmar e afastar o Hizbollah armado da fronteira com Israel. Mas no caso da Palestina, em que há resoluções que falam de uma total desocupação da Cisjordânia, nem um movimento contra Israel acontece. Caberia nesse caso sanções e punições a Israel? E há atenuantes para o cumprimento de cada resolução, quero dizer, há resoluções mais legítimas do que outras aos olhos da lei internacional? SALEM: Há basicamente dois tipos de resolução da ONU: as que emanam da Assembléia Geral e as que são o produto do Conselho de Segurança. As resoluções da Assembléia Geral não são obrigatórias, mas muitas vezes são vistas como a representação do que diz o direito ou do que é legítimo, especialmente se são aprovadas por grande maioria dos Estados que a compõem - todos os membros da ONU, a maior parte dos Estados do mundo. Já as decisões do Conselho de Segurança, relativas a alguns assuntos como paz e segurança, são obrigatórias. Mas essas decisões resultam de acordos políticos que são muito influenciados por aqueles Estados que têm uma voz preponderante no Conselho, os que têm o chamado direito de veto. É por causa desses acordos políticos que se pode aprovar uma resolução que manda o Hizbollah se desarmar, mas não se pode aprovar uma outra, porque os Estados Unidos se opõem, que condene Israel por seu ataque ao quartel da ONU, por exemplo. Isso acaba tirando, aos olhos de muitos, a legitimidade dessas decisões, afetando a força do direito. Se uma decisão do Conselho de Segurança não é obedecida, o próprio Conselho, se houver acordo político, pode decidir que ações tomar, inclusive o uso da força, mas isso só acontece, como dito, se houver acordo político e as circunstâncias parecerem favoráveis. ICARABE: Por último, a respeito de uma frase que li em artigo seu, você diz: “A humanidade sempre conheceu a guerra e nosso senso de humanidade estabeleceu regras e nos ensinou o que era inadmissível”. Obviamente, o direito internacional é muito pouco efetivo em fazer valer essas regras do que é inadmissível. Poderíamos considerar que, pelo menos quando os interesses da potência hegemônica estão em jogo, o conjunto de leis formuladas para proteger o homem da guerra e, no caso da ocorrência da guerra e das atrocidades da guerra, é letra morta? SALEM: O direito em geral e o direito internacional em especial não podem tudo. Algumas vezes, desempenha um papel mais efetivo e outras vezes é relegado a uma posição menos importante. Quando os interesses de uma superpotência são contrariados pelas regras do direito, se essa superpotência estiver menos propensa a levar o direito em consideração, não resta dúvida de que a performance deste último será afetada. É exagero, no entanto, dizer que o direito é letra morta. Ainda que seja pouco efetivo, ele avança e se impõe no discurso, tanto de quem o viola, pois esses sempre dizem estar agindo segundo o direito, quanto de quem sofre com a ilegalidade. O direito pode ser a arma dos fracos, mas é uma arma, e deve ser usado como tal. ICARABE: O direito não seria um instrumento para exercer o poder, ou seja, dos fortes. Então como o direito poderia ser visto como a arma dos fracos? Como o direito teria alguma utilidade para os fracos, para evitar os abusos cometidos por potências como os Estados Unidos? SALEM: O direito pode ser pensado como instrumento de dominação, no sentido de que ele seria produzido pelos mais fortes ou pelas classes dominantes e traduziria sempre seus interesses. De todo modo, ainda quando não é assim, o direito sempre traduz em alguma medida as relações de força. Mas quando o direito está dado e suas normas operam numa sociedade e garante aos seus elementos alguns direitos e organiza a vida entre eles, quando os direitos dos mais fracos são desrespeitados ou os seus interesses legítimos são bloqueados, diz-se que o direito é a ultima arma de que dispõem. Ele seria a arma dos fracos porque os fortes não necessitariam dele do mesmo modo. O direito pode sim servir de freio à atuação ilegítima do poder e para isso deve ter a sua própria legitimidade incrementada, ao contemplar os interesses e os valores de toda a sociedade em que opera e ao tornar-se cada vez mais performante. Mas este é um processo que demanda grande esforço.