“Matei Sherazade para que ela pudesse renascer com mais direitos”

Dom, 20/11/2011 - 18:38
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A escritora, jornalista e tradutora libanesa Joumana Haddad esteve no Brasil na última semana para divulgar seu livro “Eu matei Sherazade”, recém publicado pela editora Record. Em debate realizado em 18/11 pelo ICArabe, a editora e a Casa do Saber, Joumana falou sobre sua vida e formação política e intelectual, além de responder perguntas do público.

Nascida em Beitute, em uma família erudita e conservadora, cresceu interessada pela leitura e devorou clássicos da literatura árabe e mundial, como As mil e uma noites, entre outros. A figura de Sherazade, em muitos espaços saudada como a de uma mulher extremamente astuta, inteligente e criativa, sempre incomodou Joumana. “Ela negociou seu direito básico de permanecer viva ao contar histórias ao rei”, explicou a escritora ao público, “em uma postura que não é aceitável nos dias de hoje”, completou.

“Vejo muitas Sherazades por aí, não só no mundo árabe, mas em todo lugar. As mulheres continuam negociando seus direitos”, disse Joumana, que na sequência respondeu porque matou Sherazade: “não havia outra forma de me livrar dela. Não a matei para cancelá-la, mas para que ela pudesse renascer como outra mulher, que não negocia seus direitos e conta história para seu prazer”, disse.

Perguntada sobre o estereótipo recorrente que retrata a mulher árabe como ser eternamente submisso, Joumana discordou da afirmação de que existe apenas uma mulher árabe, assim como não se pode falar de uma mulher brasileira de forma generalista. “Infelizmente o clichê da mulher árabe oprimida existe, mas há também mulheres fortes, emancipadas e educadas que trabalham para melhorar suas vidas e das demais, que merecem ser ouvidas”, declarou. Ela acredita que a possibilidade de transformar a realidade precisa vir das próprias mulheres, que muitas vezes se enxergam apenas como vítimas, adotando uma postura mais cômoda do que a luta cotidiana.

Revista Corpo

Uma das inúmeras atividades intelectuais de Joumana é a edição da revista Corpo, uma publicação em língua árabe voltada para temas como sexualidade. O projeto nasceu há dois anos, como resultado de uma necessidade de expressar a fúria da autora em relação aos tabus que cercam as mulheres e seus corpos. “Os livros antigos tratam esses temas de forma bela e natural, e hoje o corpo é encarado com vergonha e mistificação”, afirmou.

Questionada sobre os problemas que a publicação de uma revista como essa poderiam lhe causar, Joumana respondeu que já esperava enfrentar dificuldades, principalmente por conta da revista – em árabe e com artigos assinados sem pseudônimos – ser editada por uma mulher. “Se um homem editasse essa revista seria diferente, eles podem expressar sua sexualidade livremente e ainda decidir sobre a da mulher”, contestou.

Inevitavelmente, ao tratar de temas como sexo e virgindade, a revista esbarra em questões religiosas. “Seria hipócrita falar dos problemas das mulheres em uma sociedade calcada no patriarcado sem tocar nas religiões monoteístas”, disse, “e não só o Islã, mas o catolicismo, religião em que fui criada, é patriarcal e muitas vezes misógino”. Para Joumana, uma boa forma das mulheres transformarem essa realidade é procurar criar seus filhos dentro de concepções diferentes.

Mulher de burca versus mulher fruta

Ao longo do debate, Joumana, que se identificou como pós-feminista, pois acredita no papel dos homens na transformação da vida das mulheres, falou também sobre situações de opressão fora do mundo árabe. “Não vejo grande diferença entre uma mulher de burca e uma mulher-fruta”, disse, se referindo às conhecidas mulher-melancia e congêneres, que habitam programas de televisão e revistas masculinas Brasil afora.

“O véu força a mulher a não ter presença. Já a mulher-fruta é tratada como pedaço de carne, peça de divertimento para os homens. Ambas são oprimidas pelo sistema patriarcal, mesmo que digam ‘essa é minha escolha’. No caso da burca, não é bem uma escolha, pois a alternativa é não usar e ser presa, apanhar ou ser estuprada. Mas a mulher que opta por ser tratada como carne está obedecendo ao estereótipo da mulher-objeto. É o mesmo tipo de humilhação. Nos dois casos não há dignidade. O véu tem muitas apresentações”, concluiu.

Joumana falou também sobre a diferença de tratamento em relação às mulheres em países com o Líbano e a Arábia Saudita. “Há diferença, mas no Líbano as mulheres podem fazer algumas coisas e por isso se acham emancipadas. Só que as leis as tratam como cidadãs de segunda categoria. Elas têm poucos direitos, mas acham que são livres pois vestem-se como querem e podem conseguir linhas de crédito especiais nos bancos para colocar próteses de silicone nos seios”, ironizou. “Vejo mulheres que pararam de lutar porque acham que têm tudo, mas se não há luta, há retrocesso”.

Primavera árabe

Ao ser questionada sobre os protestos que tomaram conta de diversos países do mundo árabe desde o início de 2011, e que derrubaram ditaduras na Tunísia e no Egito, Joumana se mostrou cética. “Não posso me dar ao luxo de ser otimista. Estamos entre dois monstros, de um lado as ditaduras, e de outro o extremismo islâmico”.

Sobre a forte presença de mulheres nos protestos, a escritora foi categórica: “as mulheres saíram às ruas, mas desapareceram do processo quando as novas estruturas de poder começaram a ser criadas”. “O mundo árabe se frustrou com as ditaduras e se voltou para a religião. Ainda precisamos descobrir a opressão do Islã”.

Poesia

Joumana encerrou a noite com a leitura de um poema em árabe. Na sequência, autografou exemplares de seu livro e conversou individualmente com os presentes. Além da atividade na Casa do Saber, em São Paulo, ela participou da Feira Literária Internacional de Porto de Galinhas, a Fliporto, realizada nas cidades de Olinda e Recife entre 11 e 15 de novembro.