O Dia Internacional da Mulher e a mulher árabe: ainda o Outro

Qui, 08/03/2018 - 00:11

 

Por Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat

No dia 08 de Março de 2018 celebrou-se mais um Dia Internacional da Mulher. Como ocorre sempre nestas datas, busca-se fazer um balanço global da mulher contemporânea no mundo. Mas quem é, afinal, esta mulher contemporânea?

Interessados mais zelosos ou atentos apressam-se então para proclamar a necessidade de pensar regionalismos, classes, raça, e religiões – particularidades estas que buscam desconstruir o estereótipo da mulher caucasiana ocidental, ainda que o próprio conceito de ocidental esteja sob debate. Este esforço, naturalmente, é necessário e bastante bem-vindo. Mas seu resultado de algum modo produz uma mulher árabe, um “outro oriental”. Mulher árabe esta devidamente decolonial, fruto de uma tentativa não eurocêntrica de entendimento da modernidade e de uma preocupação com a subalternidade. Mas, ainda assim, nos melhores casos – esqueçamos daqueles tipos de feminismo que fazem uma chamada pela salvação da mulher árabe – o resultado é a construção de uma mulher árabe: por sua vez igualmente genérica e homogênea. Pouco esforço é feito para pensar estas mesmas categorias de classe, religião e raça dentro do mundo árabe. Afinal, de qual mulher árabe se fala?

Em 27 de janeiro de 2018 um conjunto de intelectuais e ativistas feministas sediadas nos Estados Unidos publicou no The Guardian um chamado para uma nova greve geral internacional das mulheres neste próximo 8 de março. O texto, assinado por intelectuais como Angela Davis Nancy Fraser, defende a urgência de um feminismo combativo articulado de maneira interseccional. O manifesto afirma, ao falar da realidade norte-americana: “Nesse um ano de governo Trump, não fomos apenas atacadas com abuso verbal e ameaças misóginas sob o disfarce de declarações oficiais, o regime Trump colocou em prática políticas que continuarão tais ataques contra nós de formas profundamente institucionais”. O leitor poderia facilmente trocar Donald Trump por algum líder teocrático do Médio Oriente e apressadamente afirmar que o Islã é essencialmente misógino, ou que países árabes cerceiam as liberdades mais fundamentais das mulheres. E aí novamente estariam misturados religião, etnia e patriarcalismo. O manifesto continua: “As campanhas #MeToo, #UsToo e #TimesUp tornaram visível aquilo que a maioria das mulheres já sabia: seja no ambiente de trabalho ou em casa, nas ruas ou nos campos, em prisões ou em centros de detenções [...] a violência de gênero com seu efeito racista diferenciado assombra a vida cotidiana das mulheres. [...] #MeToo, #UsToo e #TimesUp não apenas expuseram estupradores individuais e misóginos, elas rasgaram o véu que escondia as instituições e estruturas que os autorizava”. E não se trata aqui do movimento #MosqueMeToo (que vem tomando cada vez mais corpo e escala) denunciando abusos sexuais sofridos por mulheres durante sua peregrinação anual à Mecca (hajj). Trata-se, talvez de forma contra intuitiva, de movimentos denunciando histórias de assédio sexual, agressões e abusos generalizados de poder em empresas e diferentes indústrias norte-americanas. Mas o paralelo com qualquer demanda feminista ao redor do mundo é brutal.

Um poderia esperar que se fizesse neste espaço um balanço dos 7 anos da Primavera Árabe rememorado no último dezembro de 2017. Mas como fazê-lo se a realidade da mulher libanesa é o verdadeiro inverso da mulher saudita? Ou se as ditas mulheres emancipadas que terceirizam o trabalho doméstico e o cuidado de suas crianças replicam a mesma lógica tantas vezes observada entre a classe média alta no ‘mundo ocidental’? O que distanciaria a mulher árabe da mulher brasileira em suas jornadas triplas, esquivando-se ao mesmo tempo do assédio nas ruas e das expectativas de seus maridos e pais, das pressões para o casamento e filhos, ou da demanda por melhores serviços de bem-estar social? De qual mulher árabe se fala? E de qual mulher brasileira se fala?

O que as une ou o que as distancia tem muito mais a ver com a posição estrutural na qual estão inseridas do que com geografia, religião ou etnia. Segue daí a necessidade de se falar em categorias como classe, de colonialismo, de estruturas autoritárias permanentes e do entendimento de que intimidação e a violência de gênero são fenômenos registrados internacionalmente com a mesma intensidade, não estando ligados à religião de forma exclusiva – menos ainda ao Islã. Contextos políticos antidemocráticos e repressores são essenciais para a compreensão tanto do sectarismo quanto das razões pelas quais lutam as feministas árabes, não a teologia. Ainda assim, é preciso ressaltar, o feminismo no Oriente Médio e mundo islâmico é extremamente diverso, indo do islâmico ao secular e nacionalista, com diferenças significativas entre países como Egito, Líbano, Turquia e Irã.

O debate sobre a mulher árabe ou islâmica parece perdido entre, de um lado, o batido – e sobretudo desconectado da realidade  –  discurso de empoderamento e libertação desta mulher; e, de outro, o discurso igualmente cerceador que confina a mulher árabe à sua identidade particularizada, conferindo-lhe uma espécie de status especial e protegido. Ao flertar com o relativismo e o culturalismo do “Oriente”, religião e etnia frequentemente se confundem, e a mulher árabe termina por ser identificada por categorias que já não se sabe se são comunais, religiosas ou nacionais. Confere-se um caráter tão particular e resguardado à mulher árabe ou ao mundo árabe que pouco diálogo pode ser travado com agendas comuns alhures. Não somente a mulher árabe é confinada à sua identidade religiosa como, em um sentido, o Oriente Médio todo é confinado à sua religiosidade como característica endógena, primordial e imutável.  Mais uma vez aqui, pouco se avança.

Críticos poderão condenar este texto como desconstruidor da categoria “mulher árabe”, afirmando que este tipo de análise impossibilitaria qualquer forma de agregação teórica, destruindo por completo qualquer entendimento sobre “a mulher árabe”. Neste sentido, na ausência de um denominador comum da “mulher árabe”, o próprio “mundo árabe” estaria perdido em sua identidade. Em um sentido, sim, não há um único “mundo árabe” ou “mulher árabe”, mas vários. Mas, ao contrário de um pós-modernismo radical, de desconstrução de categorias, é preciso que pensemos diversidade dentro da própria diversidade. É preciso que pensemos diversidade dentro deste mundo que entendemos como “outro”; pois, caso assim não seja, o próprio esforço ou exercício de alteridade se torna vão e nulo.

Talvez o leitor encerre o texto com mais dúvidas e incertezas do que o iniciou, condenando-me por não ter, afinal, respondido à pergunta “quem é esta mulher árabe contemporânea”. Neste 8 de Março, a mulher árabe que fará uma autorreflexão sete anos após o início da Primavera Árabe não é uma, são várias. São várias pois cada qual fala a partir de um lugar, dos lares no Golfo Pérsico onde trabalhadoras domésticas imigrantes sofrem exploração e trabalho forçado; do resistente vilarejo de Nabi Salih na Cisjordânia ocupada, lar de Ahed Tamimi; das mulheres sírias e iraquianas lutando contra a violência, sequestro e estupro do Daesh; ou dos pujantes e vibrantes movimentos sociais de Beirute.

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Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat é doutoranda e mestre pelo programa de Ciência Política da USP e diretora de Relações Nacionais do Icarabe, Instituto da Cultura Árabe. Possui bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e pós-graduação em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). É integrante do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano na Universidade de São Paulo (GT OMMM).

Legenda da foto principal (acima):  a diretora egípcia Hanan Abdala fotografa manifestação na praça Tahir, no Cairo, em 2011 - divulgação

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Ahed Tamimi, ativista palestina de 16 anos

 

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A egípcia Asmaa Mahfouz, uma dos cinco ganhadores do prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento
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Samar Badawi, ativista saudita
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A ativista e jornalista iemenita Tawakkol Karman, Prêmio Nobel da Paz
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A cineasta libanesa Nadine Labaki