A produção musical que junta árabes e israelenses

Seg, 30/10/2006 - 19:50
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Mariam Said, ao lado do músico israelense Daniel Barenboim, dirige a Fundação Barenboim-Said, fundada pelo músico israelense e pelo intelectual palestino Edward Said, marido de Mariam falecido em 2003por Arturo Hartmann e Soraya Misleh O intelectual palestino-americano Edward Said e o maestro israelense Daniel Barenboim conheceram-se ainda nos anos 90, quando suas viagens coincidiram e se encontraram em um lobby de hotel em Londres. Ali daquele encontro, e da afinidade amistosa que surgiu entre os dois, ganhariam impulso projetos musicais que buscariam colocar frente a frente, lado a lado, para fazer uma produção musical conjunta, árabes e israelenses. “A idéia inicial desses projetos surgiu quando Daniel e Edward se encontraram, viram que tinham coisas em comum e se tornaram amigos”, revela Mariam Said, viúva do intelectual palestino, falecido em 2003. Em 1999, Barenboim foi convidado para montar uma atividade musical na cidade alemã de Weimar, então capital européia da cultura. Contatou Said e resolveram fazer uma oficina com músicos israelenses, palestinos e árabes . Ali, na Europa, na Alemanha, a oficina de Weimar seria o embrião que levaria à formação da orquestra West-Eastern Divan e, posteriormente, à Fundação Barenboim-Said de educação musical. “O nome da orquestra foi dado por Edward e Daniel por causa de uma coleção de poemas feitas por Goethe, que foi o primeiro europeu a dizer que a relação entre o Ocidente e o Oriente não deve ser de adversidade, mas de complementaridade. Weimar foi onde Goethe nasceu e viveu”, explica Mariam. A Fundação ganharia corpo em agosto de 2003, quando surge o projeto de sua fundação durante a celebração da quinta edição da oficina da orquestra West-Eastern Divan na Andaluzia. Posteriormente, o ato de fundação que sacramentou a Fundação Barenboim-Said não teve Said como testemunha - ocorreu já em 27 de julho de 2004 na Residência Lantana, Pilas, Sevilha -, mas acabaria por concretizar um dos projetos mais importantes do intelectual. A partir desse momento, os projetos expandiram-se e fincaram raízes no sul da Espanha, Sevilha – onde há um conservatório e um jardim de infância musical - e nos territórios ocupados da Palestina, com projetos de ensino em várias cidades, além de um Conservatório e uma escola de jardim de infância musical em Ramallah. Mariam, presidente de honra da Fundação, diz que o projeto ainda não conseguiu chegar a Gaza, um lugar que conhece pouco de uma rotina pacífica, mesmo depois do desligamento israelense. “Temos esperança de ir a Gaza. Conseguimos levar professores que ensinam em Belém, em Ramallah, em Nablus, em Jerusalém e em Nazaré. Eles tentam ir a outros lugares, mas é muito perigoso”. Regendo um encontro entre árabes e israelenses A idéia de que os palestinos poderiam ter na música uma forma de fortalecer sua cultura e dignidade e a de que árabes e israelenses poderiam encontrar-se em uma base de igualdade jamais deixaram de lado a exigência da excelência musical para os projetos da fundação e para a orquestra especificamente. “Há um músico alemão que trabalha com Barenboim em sua orquestra na Alemanha, e ele vai para Israel e os países árabes fazer audições de músicos”. Aliar essa excelência com a idéia conceitual de agir de alguma forma na questão palestina, especificamente, e na relação de árabes e israelenses, em geral, é o desafio constante do projeto, um comprometimento que precisa ser aceito pelos músicos que compõem a turnê. “Às vezes temos um ou dois que dizem que não querem, que estão na orquestra apenas pelo maestro Barenboim e a música, mas então ele diz: ‘se você apenas quer trabalhar comigo, vá fazer uma audição para a Staatskapelle (de Berlim). Este é um projeto em que você deve saber que estamos fazendo algo mais’”, diz Mariam. A oficina da West-Eastern Divan, por dois anos, envolveu talentos musicais de pessoas entre 14 e 25 anos vindos de Israel e de países árabes, como Líbano, Síria, Egito, Jordânia e Palestina. O processo de formação da orquestra pode ser visto no filme “O conhecimento é o começo”, exibido antes da palestra de Mariam Said, que encerrou o evento “Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito”, do ItaúCultural. A presidente de honra admite que os palestinos sempre tiveram mais dificuldades de juntarem-se à orquestra, pois pela ação do exército de Israel, fossem por ataques esporádicos ou os bloqueios constantes, sua educação era problemática. No entanto, a orquestra hoje tem três músicos da Palestina. Tala, uma das primeiras palestinas da orquestra, começou a tocar violino aos 6 anos, mas teve que interromper os estudos, dada a conjuntura difícil. Não havia professores, nem condições para o aprendizado. O projeto lhe trouxe não apenas a oportunidade de resgatar sua vontade de tocar, mas de repensar a situação de segregação a que são submetidos os palestinos nos territórios ocupados. No filme, ela comenta a separação imposta entre palestinos e israelenses, a impossibilidade de um conhecer o outro e a necessidade de coexistência, uma vez que os dois povos talvez tenham que viver lado a lado para sempre. E enfatiza: “Precisamos derrubar os muros em nossas mentes”. “Ela (Tala) é uma jovem impressionante. Ela juntou-se à orquestra com 15 anos, agora ela está com 17. O problema é que não tínhamos muitos palestinos dos territórios ocupados, pois a educação musical era muito interrompida e os professores musicais não eram suficientes, mas esta garota estava tão motivada que finalmente conseguiu”, revela Mariam. Ao voltar para o interior de suas fronteiras, a presidente de honra acredita que, de alguma forma, essas pessoas, árabes e israelenses, vão mudadas e podem transmitir algo que aprenderam dentro da orquestra para suas sociedades. Os encontros dos músicos também são acompanhados por discussões sobre diversos assuntos, de música e política a secularismo. “Talvez a mudança não seja aparente, mas obviamente eles mudam muito. Algumas das crianças que você vê no documentário ‘O Conhecimento é o Começo’ não continuaram com esse projeto, dizem que é demais para eles. Outros continuam, se graduam e se tornam professores. Um deles ensina para nós em Damasco”. Para a surpresa de Said, um encontro de árabes com árabes A idéia inicial de Said e Barenboim, de promover o encontro entre palestinos e israelenses e entre árabes e israelenses, ganhou uma faceta inesperada e acabou por promover o encontro entre os árabes de uma geração mais recente. “O projeto tornou-se também um encontro de árabes com árabes. Os palestinos da Cisjordânia e os árabes não se conheciam, pois depois de 1967 eles foram excluídos dos países árabes. Os libaneses e os sírios foram excluídos do Egito, pois durante a guerra civil libanesa o Egito fechou suas portas para os outros árabes, especialmente os do Líbano e da Síria. Eles não queriam os libaneses assentando-se no Egito e a Síria estava envolvida na guerra do Líbano. Então, os libaneses, sírios e os jordanianos se conheciam de certa forma, bom, os libaneses e os sírios com certeza, pois houve uma abertura entre eles, mas os árabes puderam conhecer os outros árabes, o que não era verdade para esta geração, diferente do que foi para minha, em que todos nos conhecíamos. Também os palestinos dentro de Israel, aqueles com os quais Shai trabalha, nunca tiveram qualquer contato com outros árabes, ou mesmo com os palestinos nos territórios ocupados, pois muitos deles não podem cruzar a fronteira”. O Divan continua no dia 19 de dezembro, no Carnegie Hall, Nova York.