A reflexão de intelectuais brasileiros sobre o trabalho de Edward Said - lançamento 9 de dezembro de 2005

Ter, 16/11/2004 - 00:00
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O geógrafo e professor da USP Aziz Ab´Saber, um dos autores do livro “Edward Said: trabalho intelectual e crítica social”, considera que qualquer estudo que analise com consistência os problemas criados pela colonização desde o século XVI até nossos dias “é um estudo muito pertinente e oportuno”.Em 2002, em depoimento para o documentário “Selves and others: a portrait of Edward Said”, de Emmanuel Hamon, o intelectual palestino olhou para uma foto sua, em preto e branco, tirada 11 anos antes, em 1991, em que está em primeiro plano diante de um fundo escuro e um olhar penetrante para a lente. “Um senhor soturno, de olhar sério e idade incerta. Você vê que ainda não tenho os cabelos brancos”. Said disse que na época da foto sabia que tinha leucemia, mas não tinha recebido qualquer tratamento. Completa: “uma foto sombria, com certa angústia e bastante incerteza. Um panorama severo de um intelectual da oposição”. É esse retrato, de um intelectual inquieto com o absurdo da dominação do outro, que o Instituto da Cultura Árabe, com a Editora Casa Amarela, traz para o público no livro “Edward Said: trabalho intelectual e crítica social”. O livro traz artigos de Aziz Ab´Saber, Milton Hatoum, Francisco de Oliveira, Marilena Chauí, Ricardo Antunes, José Arbex Jr., Ali El-Khatib, Soraya Smaili, Lejeune Mato Grosso, Arlene Clemesha, Paulo Farah, Francisco Miraglia e Emir Sader. O escritor Milton Hatoum – autor de “Relato de um certo Oriente” e “Dois Irmãos” –, para quem Said foi um dos grandes pensadores da segunda metade do século XX, diz que ele “traduziu para o ocidente uma complexidade do mundo árabe que sempre foi menosprezada. Como intelectual palestino e um dos grandes da segunda metade do século XX, divulgou a legitimidade de uma cultura escondida”. O mundo árabe do qual Hatoum fala foi uma das fontes de produção para Said. O palestino admitia que sempre teve que negociar entre as suas diferentes identidades e que o sentimento de exílio e de não pertencer sempre esteve presente, mesmo antes de conseguir articulá-lo. Nasceu na Palestina em novembro de 1935, em uma terra ainda não independente e sob mandato britânico. Estudou grande parte de sua infância e adolescência no Egito também colonizado. Lá, em um país de maioria muçulmana, se sentia fora de lugar como parte de uma família de árabes cristãos. Pai e mãe eram palestinos, mas Wadie Said, o pai, tinha cidadania estadunidense, estendida aos filhos, e a mãe era descendente de libaneses cristãos. Depois, quando foi para os Estados Unidos continuar os estudos, a sensação de se perceber em um país onde os árabes são o outro dá um outro caráter a seu exílio. Ele admite que em um primeiro momento “sentia vontade de desaparecer”. No entanto, a partir de 1967, quando Israel ocupa os territórios palestinos, Said começa a consolidar o sentimento de revolta e, ali, se torna um ativista político. Dez anos depois seria lançada a sua obra mais conhecida, “Orientalismo”, em que detalha o processo da construção da imagem do árabe a partir do século XIX, com o propósito de dominação por parte das potências européias. Na obra, também mostra como esse orientalismo foi atualizado quando os Estados Unidos ocuparam o lugar de grande potência no mundo. Para Hatoum, o palestino fez um análise consistente e “procurou analisar o movimento colonialista e imperialista, como foram traduzidos no discurso e na representação. Procurou demonstrar a visão que o mais forte tem do colonizado”. Para Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, apesar de Said dirigir sua crítica para o modo como as potências olham para o mundo árabe e muçulmano, o corpo de conhecimento do intelectual é importante para ajudar a entender as atuais relações de disputa que se dão entre a potência Estados Unidos e outras nações periféricas subjugadas que buscam alternativas de resistência contra o pensamento hegemônico, não só econômico, mas também cultural. “Ele ajuda a pensar a complexidade nação e mundo, e na Palestina talvez essa seja a demonstração mais explosiva do problema” Para Said, o grande problema intelectual com o qual se debatia era a possibilidade de conciliar humanismo e conhecimento, sem que fosse produzida qualquer tipo de dominação. Mamede Jarouche, professor do departamento de Língua e Letra Árabes da USP, diz que Said construiu um instrumento teórico que é amplo e pode ser aplicado para entender mesmo as desigualdades que existem dentro do Brasil. “Embora na aparência o objeto seja o Oriente Médio, sua obra fornece instrumentos para analisar as relações entre centro e periferia, dá para pensar o Brasil com o mundo e o interior do próprio Brasil. Dá para analisar uma idéia que está em Euclides da Cunha, por exemplo, a diferença entre o interior e o litoral. As desigualdades e a tensão que existe entre dois pontos”. Said, através da força de seu trabalho e da consistência intelectual que manteve, aparece como um ícone da luta de resistência contra a dominação imperialista. “Sua influência continua. Ele é um autor traduzido em 30 idiomas. Fui para a Itália lançar um livro e a editora que editou meu livro é a mesma que edita o livro do Said. Ele é lido por alunos e professores, muitas pessoas na Europa conhecem sua obra”, afirma Hatoum. O palestino jamais se fixou em qualquer movimento político. Foi atacado pela extrema-direita sionista dos Estados Unidos, criticava duramente a política dos Estados Unidos e de Israel de privação da vida palestina, mas também era um dos mais ferozes críticos da conduta política da Autoridade Palestina e de Yasser Arafat. “Ele se tornou um ícone de uma esquerda não dogmática. De uma esquerda independente e não-partidária. Ele abandonou a OLP. Tinha uma perspectiva solitária. Sua grandeza intelectual vinha solidão”. Aziz Ab´Saber fala da importância do estudo das formas de colonização O geógrafo e professor da USP Aziz Ab´Saber, um dos autores do livro “Edward Said: trabalho intelectual e crítica social”, considera que qualquer estudo que analise com consistência os problemas criados pela colonização desde o século XVI até nossos dias “é um estudo muito pertinente e oportuno”. Aziz explica que existe uma tipologia de colônias feita por geógrafos em três grandes tipos. Em primeiro lugar, as colônias de enraizamento, “com a preocupação de colocar um certo conjunto demográfico vindo das áreas de origem que projetam a colonização”, como o que ocorreu no Brasil no século XVI. Os outros dois são mais recentes, e foram também detidamente abordados por Said em sua obra “Orientalismo”. Aziz explica que o segundo tipo é o das colônias estratégicas. “O mundo europeu, depois da era das grandes navegações, percebeu que alguns espaços poderiam ser colonizados de modo burocrático e administrativo, e ligeiramente bélico, em função do interesse estratégico que aquela área tivesse para a matriz de onde procediam as idéias de colonização”. Nesse período, os europeus colonizaram, por exemplo, o Canal de Suez, que Said analisa como um dos fatores centrais na possibilidade que o Ocidente teve de domesticar o Oriente. Aziz também cita o deserto do Saara, conquistado pelos franceses, como exemplo desse segundo tipo. O terceiro tipo, para Aziz o mais importante, são as colônias de enquadramento. “Alguns países poderosos iniciaram, no século XIX, um processo de enquadrar alguns países de menor força bélica, do ponto de vista burocrático e bélico. Foi caso da Índia, mais espetacular, pelos ingleses”. O geógrafo afirma que outras áreas sofreram esse tipo de influência, inclusive países latino-americanos, como o caso de Cuba. “Quando se diz república das Bananas, a gente fica logo sabendo que o problema foi enquadrar esses pequenos países, sobretudo da América Central, e sempre tendo em vista a capacidade administrativa e burocrática, e por trás disso, a força bélica, que quando não estava totalmente presente, como na Índia, ela ficou na retaguarda, como o caso de Cuba. Qualquer coisa que houvesse, interferia. Interferiram, por exemplo, em Cuba, e lá os cubanos conseguiram vitórias importantes”. Hoje, Aziz identifica um outro tipo de colônia, por enquadramento financeiro e burocrático. “Criou-se, por causa das diferenças econômicas entre países, do século XX, e agora segue no século XXI, com muita importância, entre os países hegemônicos, e que o principal é os Estados Unidos. Fundou-se um outro sistema de colonização, embora continue lá na retaguarda a força bélica, que pode interferir em momentos que eles considerem críticos. Muitos países estão hoje assim, através de bancos, negociações, OEA, um enquadramento muito delicado e perigoso. Basta ver no caso da América Latina, o esforço que o governo americano faz pela Alca. Ela define um protótipo de colônia de enquadramento financeiro, burocrático, e com possibilidades de grandes prejuízos para os países que achavam que pode se vincular ao ideário da Alca”. Para Aziz, essas formas de colonização se entrelaçam, sobrepõem e justapõem no percurso histórico. No Oriente Médio, ele diz que em certo momento o domínio colonial era feito pelos turcos sobre o Líbano e a Síria, “que não chega a ser um enquadramento bélico e burocrático, igual ao que aconteceu na Índia, mas é paralelo”. Depois da Segunda grande Guerra houve uma divisão das influências dos países externos e Inglaterra e França enquadraram a região cultural e economicamente, processo estudado em detalhes por Said em “Orientalismo”. “Hoje o inglês enquadra a lingüística regional”, afirma Aziz. No entanto, para o professor da USP, a interferência mais triste da história foi a dos Estados Unidos sobre o Iraque. “O que me impressiona é que ao fazer esse choque direto do bélico, do financeiro e o burocrático e o mercadológico, eles não previram os impactos que teria no pós-guerra. E existe uma variedade de trabalhos na Inglaterra e nos Estados Unidos sobre esses impactos”. Organização do Livro: Arlene Clemesha. Autores: Soraya Smaili, Jacob Gorender, José Arbex Jr., Ricardo Antunes, Ligia Osorio Silva, Milton Hatoum, Aziz Ab'Saber, Emir Sader, Marilena Cahuí, Francisco de Oliveira, Mamede Jarouche, Mohamed Habib, Lejeune Mato-Grosso, Ali El-Khatib, Ivana Jinkings, Arlene Clemesha, Paulo Farah e Francisco Miraglia.