As centenas de narrativas das Mil e Uma Noites

Sex, 22/02/2008 - 13:50
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O “Livro das Mil e Uma Noites” constituíram-se como um universo de imaginário criado por uma literatura árabe, uma compilação de fantasias de um povo para todos os povos do mundo, ou, como diz o tradutor Mamede Jarouche, um conjunto de histórias onde “somos todos ‘Sahriyares’ nesta história de sedução”Por Julia Nader Dietrich Tapetes mágicos, um bravo marujo em mares arredios, um rei traído e uma contadora de histórias. Descrições estas que, ao serem apresentadas, não deixam dúvida: é a magia do Livro das Mil e Uma Noites, que chega ao 3º volume da tradução brasileira, a primeira direta do árabe para o português. Na sua longa trajetória, saindo do mundo árabe e persa para as estantes brasileiras, a obra segue fascinando a todos pela sua riqueza de detalhes e importância na história da humanidade. O Livro das Mil e Uma Noites é composto por uma série de manuscritos do século XIII da era cristã ou VII do calendário muçulmano. Nela estão reunidas sob autoria ou autorias anônimas as mais diversas histórias sobre os grandes temas da humanidade: da subversão da morte à sedução, do poder até a busca pela bondade. Em pequenas adaptações escolares, no meio das histórias da Dona Benta de Monteiro Lobato ou nas traduções européias, e agora, mais recentemente, na tradução do professor Mamede Jarouche, as aventuras narradas por Sahrazad fazem parte do imaginário coletivo de boa parte dos adultos e de muitas crianças. Embora seja difícil identificar como uma obra torna-se tão importante para uma sociedade, Jarouche acredita que algumas singularidades das Mil e Uma Noites fazem dela o conjunto de histórias significativas que é. “Não é o texto mais bem escrito ou a melhor literatura do mundo árabe, mas seus temas e variadas narrativas se relacionam com as diferentes facetas do que é ser humano”. Para o tradutor, um dos pontos importantes está na narração. “É uma das primeiras obras cuja voz que conta a história é uma voz feminina”, diz. É na sua voz que o leitor percebe como o rei Sahriyar é seduzido por esta mulher que, pouco a pouco, transgride a própria morte e o convence, a cada conto interrompido, à promessa de uma nova aurora. Da mesma maneira, o leitor cumpre seu papel de espectador e também se entrega à sedução de Sahrazad, aguardando a cada página o desfecho dos personagens ali descritos. Esse fascínio que as histórias contadas por Sahrazad provocam, para Jarouche, pode ser entendido através de uma analogia contemporânea, quando observamos, por exemplo, a interpretação da cantora Marina sobre uma música de Erasmo Carlos. “Quando a cantora interpreta uma canção originalmente gravada por um homem e diz ‘você precisa de um homem para chamar de seu’, toda a idéia da música ganha outro significado. É a mesma idéia nas Mil e Uma Noites, pois histórias que já existiam e foram anexadas à obra são ressignificadas a partir do momento que são contadas por Sahrazad”. Já sobre uma possível ligação entre o anonimato da autoria da obra, embora possa ter alguma importância para a ‘fama’ da história, o tradutor sempre buscou incentivar o contrário. Ele, na tentativa de compreender melhor o imaginário coletivo presente no livro, resgatou a historicidade da obra, explanando-a no prefácio do primeiro volume (ramo sírio) dos três já publicados. Também na perspectiva de valorização dos originais, o tradutor buscou respeitar a linguagem, sem rebuscá-la, diminuí-la ou, como algumas das edições européias, moralizar seu forte teor sexual. Em grande parte, foram essas edições européias que moldaram a visão dos leitores em relação às Mil e Uma Noites. Aqui, como consagrado pelo psicólogo Carl Jung, e este seria o caso da obra das Noites, a partir de relações entre as pessoas, se estabelece durante séculos o imaginário coletivo de uma sociedade. . Por isso, há uma ligação reiterada, inclusive, entre obras literárias e a forma como as sociedades as lêem e observam, nas formas analisadas por Edward Said. Nas inúmeras traduções das Mil e Uma Noites e a mais famosa delas foi a de Antoine Galland, as histórias do livro ganharam uma forma que não escapou à visão de mundo da época, imersas em um espírito colonizador. Porém, para Jarouche, é fundamental entender a obra como um produto ficcional que denota mais do que aspectos políticos e sociais, a rica imaginação e capacidade de fabular do Oriente. “Seria o mesmo que tomarmos o Machado de Assis como uma representação exata do Brasil. Teríamos, assim, um país composto só por velhacos e desonestos”, pontua. Ele continua, sem esconder o entusiasmo pela trabalhosa escolha de sua empreitada: “é uma obra que, sem dúvida, reúne um dos mais vastos repertórios narrativos, com os mais variados valores e significados”. Afinal, que leitor não se pega fascinado pela habilidade da narradora de transformar um tirano em um rei justo, com apenas a arma de contar histórias? Com ao menos mais três volumes pela frente, o tradutor não esconde a certeza sobre a importância da obra: entre tantos mitos acerca de sua autoria e discussões sobre sua origem, as Mil e uma Noites são mais do que tudo uma compilação de fantasias de um povo para todos os povos do mundo.