Cultura Árabe em Debate

Sex, 24/06/2005 - 00:00
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A mostra “Cultura Árabe em Debate”, idealizada pelo Conselho Cultural e Científico do Instituto da Cultura Árabe, teve como objetivo divulgar algumas produções que tratam do mundo árabe ou que foram realizadas em países do Oriente Médio. Entre os destaques da programação, esteve o documentário “Selves and Others: a portrait of Edward Said”, exibido então pela primeira vez no Brasil. Para discutir os temas da mostra e para contextualizar alguns dos filmes em seus aspectos socioculturais, foram convidados professores, intelectuais e sociólogos. Abaixo, veja um pouco do que foi discutido em cada um dos cinco debates que se seguiram a alguns dos filmes.Selves and Others: a portrait of Edward Said com Emir Sader, Paulo Daniel Farah e Carlos Calil Depoimentos de um intelectual que desafiam o poder no Ocidente e no Oriente Exibido na primeira noite do Ciclo de cinema “Cultura Árabe em debate”, o filme “Selves and Others: a portrait of Edward Said” , começa com Edward Said na direção de um carro. Ali, com a cidade de Nova York ao fundo, fala como aprendeu a conviver com a leucemia, diagnosticada alguns anos antes. Impressiona a coragem de alguém que fala com tanta naturalidade de uma doença que ainda não tem uma cura definitiva. Mas na trajetória de vida do intelectual, as soluções para os problemas que seus escritos levantavam, ou para as causas que defendia, também não se ofereciam em um horizonte próximo. Said viveu um constante exílio. Nasceu na Palestina, em Jerusalém, único garoto entre quatro irmãos. Sua mãe era libanesa cristã e seu pai tinha passaporte dos Estados Unidos. Estudou no Cairo, no Victoria College, instituição inglesa. Ali, diz Said, “via a história inglesa como a única história”. A trajetória da vida de Said foi um constante processo de negociação de sua identidade. Com toda sua família expulsa da Palestina ocupada por Israel, ele afirmava que não pertencia a nenhuma coletividade. Emir Sader manteve contato com Said na época em que o intelectual acabara de descobrir que tinha a doença. “Por ter nascido na Palestina, mas por ter vivido e se incorporado a cultura e vivência dos dois maiores impérios do mundo moderno, com a cultura inglesa e depois viver em Nova York, isso lhe deu a possibilidade fundamental, universal, de poder pensar os grandes dramas da humanidade, da periferia, mas vivendo a ótica do centro”, explica Sader. A grande obra de Said é “Orientalismo”. Ali, ele mostra como o Oriente é uma construção teórica reducionista feita pelo Ocidente. Ela é composta por estereótipos e imagens que retratam o árabe como sensual, vicioso, tirânico, retrógrado e preguiçoso. Desse modo, se constrói uma cultura homogênea ocidental e essa tentativa de representação de imagem tem um objetivo de dominação. Para Emir Sader, “Said deu uma contribuição fundamental para entender a hegemonia do imperialismo contemporâneo, impossível de compreender sem a imagem do árabe”. A Batalha de Argel com Andrea Piccini A resistência na Argélia contra os imperialismos francês e estadunidense O filme “A Batalha de Argel” começa em 1954, mas chega até os momentos decisivos das batalhas de rua que levariam à independência do país em 5 de julho de 1962. A história contada por Gilles Pontercovo retrata com uma fidelidade impressionante o clima da luta de resistência. Quase um documentário que lembra, inclusive, cenas de conflitos atuais que têm lugar em países árabes. Andrea Piccini, no entanto, lembrou de jogadas políticas que ficaram durante muito tempo nos bastidores da História. O professor estuda o assunto e esteve na Argélia dez anos depois do fim do colonialismo francês. Na verdade, a França já se preparava para entregar a administração de parte da Argélia para os argelinos. No Acordo de Evian, no começo de 1962, palco para um acerto de trégua com o FLN, a França pretendia ceder a independência somente da parte Norte do país. “Isso porque a França considerava o Saara uma reserva francesa, onde estava se descobrindo o potencial do petróleo no Saara”, explica Piccini. Além de explorar as riquezas de petróleo da Argélia, os franceses queriam formar um corredor para escoar a produção para os países africanos. E juntando partes do Senegal e de Mali, fariam uma zona franca tutelada pela França. “Os argelinos não aceitaram, e continuou essa batalha de dois anos, porque não aceitaram a divisão”. O FLN, no entanto, foi apoiado por uma outra potência que tinha interesse na exploração do petróleo do Saara, os Estados Unidos. O discurso estadunidense nos anos de 1961 e 1962, que antecederam a independência argelina, pressionava para uma saída francesa. A idéia vendida era que o país americano defendia a autodeterminação dos povos. Mas a realidade era que ele estava de olho na riqueza presente no subsolo saariano. “Na verdade, as companhias de petróleo americanas, as conhecidas Sete Irmãs, forneceram armas ao FLN. Esses documentos apareceram. Essas armas que chegaram ao FLN permitiram depois que se formasse o Exército de Libertação Nacional que lutou contra os franceses. Ainda hoje na Argélia elas ainda têm a exclusividade de produzir e controlar o gás e o petróleo. Essa á uma parte do acordo econômico com os Estados Unidos”, conta Piccini. Charles De Gaulle, estadista francês, não teve escolha. Com a pressão dos Estados Unidos, a França deixa a Argélia. Após a independência, no entanto, a Argélia se torna um país socialista. Socialista, mas não comunista. “O marxismo e o comunismo eram e ainda são proibidos na Argélia”, conta Piccini. Essa posição é tomada pela Argélia para se tornar um país não-alinhado, movimento que teve sua maior expressão mesmo antes da independência argelina, em 1955, no encontro que ficou conhecido como Conferência de Bandung, reunindo os países de terceiro mundo. A Argélia se uniu a essas nações que não faziam parte do bloco capitalista, dos Estados Unidos, e também não eram integradas ao bloco soviético. Desse grupo faziam parte o Egito, de Gamal Abdel Nasser, a Iugoslávia, do Marechal Tito, e a Indonésia. RECONSTRUÇÃO - A independência argelina teve um milhão de mortos. “Quando estive na Argélia e as pessoas falavam da Guerra de Libertação, todo mundo tinha pelo menos um parente que havia morrido no momento da independência”, diz Piccini. O exército utilizou napalm no ataque aos nacionalistas. Até hoje a floresta em volta de Argel é inexistente. “Eles acabaram com uma faixa da população que podia produzir. Arrasaram a infra-estrutura e o território, e os expoentes políticos”. Os argelinos, então, buscaram o apoio internacional para se levantar. Os acordos comerciais foram feitos com os dois lados do mundo. Com o bloco capitalista, inclusive com a ex-metrópole França, e com o bloco soviético. Uncovered Iraq com José Arbex Jr., Murched Taha, Paul Achcar e Hugo Monteiro A farsa sobre a invasão do Iraque é exposta com depoimentos de ex-agentes da CIA “Uncovered: The War on Iraq” foi o documentário exibido na terceira noite do Ciclo de Cinema Árabe realizado no Centro Cultural São Paulo. Dirigido por Robert Greenwald, “Uncovered” desmonta um a um todos os argumentos do governo estadunidense para a invasão e ocupação do Iraque. Entrevistando ex-agentes da CIA e outras pessoas ligadas ao governo americano, o documentário mostra que muito antes do dia do primeiro ataque, em 19 de março de 2003, o governo de George W. Bush já sabia que Saddam Hussein não possuía armas de destruição em massa e que também não tinha vínculo algum com a Al-Qaeda. Após a exibição do documentário, realizou-se um debate com os jornalistas Paul Achcar e José Arbex Jr., e a apresentação de Murched Taha e Hugo Monteiro. Iniciando a discussão, Murched lançou a questão: “Qual a razão da guerra?” Para José Arbex Jr., as razões da ocupação do Iraque estão ligadas a um projeto de dominação americana da região da Eurásia, já que lá, informou o jornalista, encontram-se 75% da população mundial, 70% do arsenal nuclear do mundo, além de 75% das reservas mundiais de petróleo. Falando sobre um projeto citado no documentário, o “Project for the New American Century”, Arbex acrescentou que este determina que os Estados Unidos devem manter sua liderança no mundo. De fato, a primeira declaração que se lê no site do projeto é a de que “a liderança americana é boa para a América e para o mundo, e que tal liderança requer força militar, energia diplomática e comprometimento com o princípio moral”. Em sua Declaração de Princípios, datada de 3 de junho de 1997, lê-se que “a América tem um papel vital na manutenção da paz e segurança na Europa, Ásia e no Oriente Médio. Se nós nos esquivarmos de nossas responsabilidades, nós convidaremos os desafios aos nossos fundamentais interesses. A história do século XX deveria ter nos ensinado que é importante moldar as circunstâncias antes que as crises venham à tona, e encontrar as ameaças antes que elas se tornem perigosas. A história deste século deveria ter nos ensinado a abraçar a causa da liderança americana”. Entre outros, assinam a declaração Jeb Bush (governador da Flórida e irmão de George W. Bush), Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz (respectivamente secretário e ex-subsecretário de Defesa dos Estados Unidos) . O jornalista libanês Paul Achcar recorda que o mundo árabe costumava ver os neoconservadores republicanos como aliados. Ele lembra ainda do papel preponderante da mídia na construção no imaginário da guerra. A afirmação foi corroborada por um jovem americano que assistia ao debate e disse ser contra a invasão do Iraque e o governo Bush, mas ressaltou que sua mãe, no entanto, devido a todas as falsas declarações do governo repetidas exaustivamente pela mídia norte-americana, realmente acredita que havia uma necessidade legítima de se fazer a guerra. Hugo Monteiro comparou as técnicas de propaganda de guerra do governo Bush àquelas usadas pelo regime nazista. Murched ressaltou que o Instituto da Cultura Árabe não apóia nenhum regime ditatorial e que, para o Icarabe, cada povo deveria ser responsável pela derrubada de seus ditadores. Outra importante ressalva foi feita por um participante da platéia que lembrou o modo como a imprensa brasileira reproduz o conteúdo da mídia internacional sem nenhum censo crítico. Já o iraquiano Khalid Tailche reclamou da falta de assistência dos países europeus ao povo do Iraque. Ele também acha que não há diferenças entre o regime de Saddam e a situação na qual o país está agora com os americanos. “Os Silêncios do Palácio” com Mansur Lutfi, Cristina Bruzzo e Muna Zeyen Um diálogo com o passado aborda problemas da mulher O filme “Os Silêncios do Palácio” conta a história de Alia, que ao receber a notícia da morte de Sid Ali, membro da aristocracia tunisiana e que a tutelou durante a infância, volta para a casa em que morou para as cerimônias de sua morte. Essa volta, na verdade, representa a busca pela própria identidade de Alia. E no percurso, os problemas da condição da mulher na sociedade da Tunísia, pouco antes de sua independência da França, são destacados e tomam forma sob a lente da diretora Moufida Tlatli. Mas o fato de estar limitado a uma certa época e contexto histórico não impede que as discussões tomem um caráter universal. Mansur Lufti, professor de Educação da Unicamp, apresentou o debate e explicou que, ainda que sob domínio francês, a Tunísia tinha um espaço de liberdade concedido. Haviam governantes de província locais, chamados “Bei”. Sid Ali, no filme, representa essa autoridade. Cristina Bruzzo, também professora de Educação da Unicamp, destacou as escolhas que a diretora tomou para contar a história em seu primeiro filme longa-metragem em que dirige e escreve o roteiro. Na interpretação de Bruzzo, Tlatli faz um entrelaçamento quase como uma colagem poética, uma mistura entre passado e presente que não se completa claramente. “A história se constitui como um quebra-cabeças que nunca se completa. Nem com a história principal dessa personagem, nem com o pano de fundo, os acontecimentos políticos se passando com a frente nacional”. Para Bruzzo, através das lembranças de Alia, há um constante regresso, sempre desencadeados por objetos que fizeram parte do passado da mulher. E esses pedaços recortados e incompletos da história nos remetem à idéia de lembranças. “Está desenvolvido de uma maneira que podemos questionar se, nessa descoberta que ela faz do possível pai dela, estamos percorrendo os acontecimentos que se passaram ou as lembranças que ela tem dele, construções que ela faz. Cada vez que lembramos de episódios nós acrescentamos coisas a ele”. E nas lembranças de Alia, percebemos as divisões dentro da sociedade tunisiana, tanto de classe, quanto de gênero. Há uma clara dominação de um mundo de cima, da casa dos aristocratas, e do mundo de baixo, das mulheres colocadas como serviçais. Esses dois mundos se configuram a partir da dominação colonial e da dominação masculina, com regras claras que definem o lugar e cada um e o que cada um pode e não pode fazer. No entanto, o mundo de baixo, espaço de confinamento, para Bruzzo, é o espaço dos acontecimentos mais intensos. “Eles evidenciam o refinamento da cultura árabe antiga, esta que sobrevive a todas estas diferentes colonizações pelas quais a Tunísia passou, e não só esse país. O canto, a música, o som do alaúde, os tambores, os episódios da solidariedade entre essas mulheres, momentos de alegria, os cheiros da comida. Ali as coisas acontecem”. Para Muna Zeyen, professora e militante dos direitos da mulher, “Os Silêncios do Palácio” é um forte filme de denúncia, que traz um olhar de protesto, de curiosidade, de violência, de discriminação, de esperança. “A mulher pouco se conhece, pouco se fala do corpo da mulher, da sexualidade da mulher. E o filme começa com duas abordagens muito fortes, o aborto e a morte”. Zeyen afirma que o filme retrata a falta de diálogo da mulher. “As mulheres pouco se expressam. No mundo, ela pouco pôde falar, expressar ‘eu não posso’, ‘eu não gosto’, ‘eu não quero’. Isso é uma coisa que a gente vê hoje”. Apesar da submissão, um ponto destacado pelas duas debatedoras é a forma como aquelas mulheres conseguem dar a oportunidade para que Alia consiga se livrar da dominação imposta. “Ela tem a ajuda das outras mulheres dali. Ter as condições de tomar as rédeas de seu próprio destino, que está impedido para todas mulheres que estão lá”, explica Bruzzo. Já para Muna, “a solidariedade é muito forte. A força das mulheres é muito forte para romper com aquela dominação, que em todo momento é vista como natural”. Mas os problemas para Alia não acabam quando ela sai da casa em que foi criada. Logo que o filme começa, ela está diante de uma gravidez e uma imposição para abortar do homem com o qual vive. De certa forma, o modelo se reproduz. Mas Muna aponta que a decisão final de Alia, de ficar com a criança, é libertadora. “A mulher árabe, por mais que tenhamos que ela é censurada e discriminada, ela tem dentro dela uma força muito grande, força de tentar romper com uma dominação milenar histórica na humanidade”. Na busca pela identidade de seu possível pai, ao recordar e enfrentar os problemas vividos pela mãe, Alia acaba encontrando a identidade da mãe, descobrindo quem era aquela mulher. “O Destino” com Michel Sleiman e Safa Jubran Contra o fundamentalismo, a força das idéias Como parte do ciclo de cinema “Cultura árabe em debate”, foi exibido no dia 1º de julho, no Centro Cultural Vergueiro, o filme “O Destino”. Dirigido pelo egípcio Youssef Chahine, ao contar a trajetória do filósofo e médico Averrois, o filme propicia reflexão sobre os descaminhos a que leva o fundamentalismo religioso. Em sua mensagem principal, como contraponto ao radicalismo, as idéias, que “têm asas e ninguém pode deter seu vôo”. Não se trata de documentário, como lembrou o professor de Língua e Literatura Árabes da USP, Michel Sleiman. “É uma obra de ficção, já que não se propõe a um resgate de fatos históricos. Mas se permite a mistura de referenciais no Alandalus (atual Andaluzia)”. Segundo destacou ele, o filme, feito em 1997, é uma clara contestação ao fundamentalismo em várias localidades no mundo árabe. “Coloca-se como uma metáfora aos perigos que podem levar a intolerância e a exacerbação do poder pessoal, quando unidos a algumas alas que, em nome da religião, na verdade prestam desserviço às culturas”. A história se passa no Alandalus, no século XII, tempo em que viveu Averrois (1126-1198), Ibn Rushd na fonética árabe. Não só seu nome, mas também suas obras sofreram alterações depois de traduzidas no Ocidente. Sleiman explica que, por ser um período de decadência do califado, abriu espaço ao surgimento inicialmente dos “almorávidas” e depois dos “almóadas”, povos muçulmanos oriundos do Norte da África caracterizados pelo fanatismo religioso. Retratados em “O Destino”, reunificaram o Alandalus, porém, com a mudança do sistema político para monarquia, também viveram decadência. O filme é ambientado em Córdoba – e não Sevilha, capital do Alandalus –, onde Al-Mansur detém o trono e Averrois é o “cadi”, ou juiz, que questiona as leis islâmicas. Para Safa Jubran, também professora de Língua e Literatura Árabes da USP, sua mensagem essencial é “essa necessidade de reflexão a respeito das atitudes e políticas que foram praticadas séculos atrás no mundo árabe e, ou, islâmico, e que às vezes a gente vê ainda hoje”. “O Destino” ilustra a forte influência do discurso de seitas místicas, como observa Jubran. “Com o argumento supostamente baseado na religião e nos textos sagrados e envolvidas por um retórica que seduz jovens, acabam por levá-los muitas vezes a cometer atos abomináveis em nome de causas fabricadas”. Estudioso da Filosofia de Língua Árabe, Miguel Attie acredita que essa é a luta que atravessa todo o filme: da razão, com Averrois, contra “dois níveis de desrazão, o da mística, representado pela seita, e o do poder e da política, precisamente na interpretação de algumas escolas jurídicas mais ortodoxas de retirar do livro revelado a legislação que possa organizar e fazer justiça na sociedade”.