Evento realiza noite de reflexão e divertimento

Qua, 08/06/2005 - 00:00

A apresentação que Michel Sleiman, diretor geral do espetáculo Dîwân, fez na abertura da noite de poesia e música, de luzes e sons, foi a deixa para entender a interação que se buscaria nas interpretações artísticas realizadas no palco. “Este é um momento de diversão e reflexão, pensamento e gozo”. Para Michel, também professor de Literatura e Língua árabe da USP, uma forma de entender o que é ser brasileiro dentro das influências que a cultura árabe legou ao país. Dîwân, espetáculo realizado no último dia 7 de junho, no teatro da Aliança Francesa com a promoção do Instituto da Cultura Árabe, reuniu textos de diversos autores em uma seqüência de linguagens combinadas, como a sonora e a audiovisual, junto com recitais que apresentaram ao público a beleza das poesias brasileira, andalusa e pré-islâmica . APRESENTAÇÃO – “A Flor da Alquimia”, primeiro dos dois módulos do espetáculo, iniciou com um trecho de Lavoura Arcaica, romance do paulista Raduan Nassar. O público podia acompanhar em português, por um grande telão, o capítulo que estava sendo lido em árabe por Safa Jubran, professora do departamento de árabe da USP. Na seqüência, as batidas de tambores xamânicos e um jogo de holofotes deram um clima especial para as leituras dramáticas realizadas, em português, por Carmem Cozzi e Michel Sleiman do poema de Adonis (Ali Ahmad Said Esber). Mônica Jurada, uma das componentes do grupo de tambores, diz que o ritmo xamânico se inseriu no evento para “levar energia”, para “fazer o sangue ferver”. E conseguiu. Durante todo o espetáculo, as poesias brasileira e árabe dividiram o mesmo palco e agradaram ao público. Isso porque os dois povos e as duas poesias guardam uma forte relação, que Sleiman explica. “Talvez a principal característica dessa coisa que se liga com o Brasil é uma espécie de conjugação de felicidade, alegria de vida, com uma nostalgia. Uma coisa que vem como se a Terra, de noite, pudesse cantar mesmo não havendo Sol, e quando vem o Sol, então, explosão total. Você pode pensar que esta concepção, unida com as forças fabulosas da natureza, como era vista pelos índios, ou então com a vitalidade guerreira e resistente do negro africano, isso vai gerar o Brasil. Vai gerar o samba, por exemplo, vai gerar os ritmos marcados com tambores. Eu digo isso porque normalmente as pessoas não atentam que isso que veio com a África, que veio com Portugal, é um elemento fortemente arabizado”. A UM MUNDO PRÉ-ISLÂMICO – Já em “Música Minha, Poesia Minha”, segundo módulo do evento, o escritor Alberto Mussa levou o auditório lotado a uma volta pelo século V da era cristã, ainda anterior à Hégira. Mussa expôs as particularidades da poesia pré-islâmica, um misto da poesia épica e lírica, muito relacionada a fatos vividos pelos próprios poetas. A especificidade dessa literatura, anterior ao islamismo, está no fato de que ela, diferente das demais poesias líricas que conhecemos, mesmo no mundo antigo, como a chinesa, a egípcia, a grega e a romana, ela é fruto de uma sociedade de pastores de camelos nômade. “Então é uma poesia que está fora de um padrão da civilização que a gente conhece, que é a organizada em torno da cidade”, explica Mussa. UM POUCO MAIS ADIANTE NO TEMPO, NA PENÍNSULA IBÉRICA- Na sequência do evento, ainda no módulo "Música Minha, Poesia Minha", a poetisa Lelia Romero ressaltou a “tolerância e a poesia” características da região de Alandalus. Ela recitou poemas de dois autores do século XI da era cristã, V da era islâmica. São eles Ibn-Hazm e Ibn-Quzmân. “O que caracterizou aquela região foi uma cultura muçulmana mais aberta, mais livre, diferente dos bérberes do norte da África, diferente da dinastia abássida que ficou em Damasco e Bagdá. Acho que ali era mais livre, tanto que possibilitou durante séculos aquela convivência de tolerância. Não era importante ser muçulmano para colaborar em alguma coisa”, explica Lelia. Michel, autor de “A poesia árabe-andaluza: Ibn-Quzman de Córdova” , explica que “a poesia andalusa é uma continuação, com alguma variação, das tradições islâmicas que se originaram no deserto árabe. Normalmente, as pessoas acham que por estar em território europeu, essa foi uma fatia não árabe, ou menos árabe, e é o contrário. Toda a música e poesia que se desenvolveram no Alandalus entre os séculos VIII e XV (na era cristã) foi uma fusão de elementos do Oriente, sintetizados junto com as culturas cristã e judaica que estavam ali também, há anos, antes da chegada dos muçulmanos”. Os temas abordados pela poesia andalusa são ligados à natureza. As flores, as árvores, os frutos e a água. Mas essa poesia também versa sobre o amor. Falando do amor das mulheres nas classes mais ricas, ela ainda ajudou a desenvolver uma nova visão do papel feminino na Europa. “Esse é um tema fundamental na poesia andalusa, porque a partir daí, essa visão da mulher como um ser capaz de amar, não só fisicamente como espiritualmente, vai entrar, pelo menos foi uma das vias, na concepção de amor e de mulher que vai se gerar na Europa a partir do século XII, na França, na Alemanha, depois em Portugal e Espanha. Uma nova concepção de amor, porque a questão da mulher era muito mal considerada, a mulher era tida, dentro da tradição cristã mais antiga e da Idade Média, como um ser incapaz de amar verdadeiramente, mais como alguém ligado à perdição do homem, sobretudo do homem puro. Essa idéia de que o homem puro pode ser também bem guiado pela mulher, pelo amor, pelo afeto feminino é uma marca do Alandalus”. NO SÉCULO XX – Depois de fazer a leitura de versos próprios, Lelia recitou Garcia Lorca (“Casada Infiel”), para ela um “herdeiro da poética árabe”. Ao final de sua apresentação, recitou duas poesias de sua autoria tiradas de seu livro mais recente, “Andaluza” (“España” e “Poções”). A autora explicou que a inspiração para a poesia que faz é de difícil explicação, mas confessa que o livro, de alguma forma, é um resgate da ancestralidade. “Sou neta de andaluses. O “Poção”, que está na parte do Andalusa que chama Floral, fala dos lírios, foi uma coisa que veio por causa dos perfumes dos lírios que tinha em casa por causa do aniversário da minha mãe”. MÚSICA Como parte do espetáculo, um grupo formado por Samy Bordokan, Cláudio Kairouaz e William Bordokan tocaram músicas árabes. Participou também da apresentação o músico Carlinhos Antunes, que acompanhou ao violão parte da leitura realizada por Lelia. Samy, na primeira intervenção do grupo, usando uma passagem do livro Vozes do deserto, de Georges Bourdoukan, apresentou o trio de instrumentos principal: “alaúde significa madeira, essas árvores maravilhosas que nos dão os frutos, que abrigam as aves com os belíssimos cantos. Essas árvores tão generosas que mesmo depois de mortas no deleitam com sua sonoridade. Este instrumento possuía no início quatro cordas, que representavam os quatro elementos da natureza, ar, água, terra e o fogo. Foi no início do século IX que um grande músico, filósofo, médico, astrônomo, resolveu acrescentar a essa obra divina uma quinta corda, a qual ele achou que tinha uma importância fundamental sobre as demais, a corda da alma”. Pausa para o solo de alaúde. Samy: “Tudo é som no universo. Foi, então, que alguém que possui o dom de ouvir o que nossos ouvidos não ouvem e enxergar o que nossos olhos não vêem passou a construir um instrumento que pudesse reproduzir os sons das esferas celestes bailando. Esse instrumento é o qânûn, cuja origem se perde na noite e no tempo”. Solo de qânûn Samy: “A alta do universo se completa, porém, falta o elo, o homem que surge do barro, assim como o durbark. O homem e o durbark são feitos da mesma matéria. Assim vai representar a pulsação, o ritmo, o coração, responsável pela irrigação do sangue e que vai elevar até esse glorioso maestro, exímio maestro, o cérebro, que nos permite pensar, ver, sentir, ouvir música”. A música se espalha no palco e o público se perde na música. A noite, alguns fizeram questão de dizer, foi um presente. A descoberta de uma cultura que parece distante, desconhecida, mas que na verdade está entranhada nas raízes do que chamamos de América Latina. E essa descoberta se deu, como anunciado no começo da noite, com gozo e pensamento, diversão e reflexão. “É importante que as pessoas do mundo, especialmente do Brasil, conheçam o que é a poesia árabe, porque ela é um dos pilares da civilização, tanto no Oriente como no Ocidente. Se ela não é ou parece não ser, é uma questão de tempo. Para isso, temos que trabalhar”, avisa Michel Sleiman.