Latuff: Cartunista vira alvo da direita de Israel

Seg, 18/09/2006 - 07:50
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Carlos Latuff, conhecido por seu trabalho sobre a Palestina, virou alvo de site ligado ao Likud. Sua ligação com a Palestina começou em 1999, quando visitou a Cisjordânia e viu a realidade palestina. Na foto, cartun popular em Ramallah presente nos chaveiros de muitos palestinos.Fazendo pesquisa rotineira na internet para procurar entradas com seu nome, o cartunista Carlos Latuff deu de cara com uma matéria publicada no site Likudnik.co.il, do dia 5 de setembro. Viu foto sua no topo de uma página escrita em hebraico, como todo o resto do site. Pediu a uma amiga sua, israelense nascida e moradora de Haifa, que o traduzisse. Descobriu que se tornara, na visão da direita do país, um dos maiores perigos à existência do Estado de Israel. O texto abre assim: “Ele tem uma referência no Wikipedia. No Google, você pode encontrar oito páginas a seu respeito. Mas e o que o Ministério de Assuntos Exteriores sabe sobre ele? E o Mossad (serviço secreto israelense)? E o Comitê de Assuntos Externos e Segurança? E o exército israelense? Ou qualquer outro que trate da segurança de Israel?”. O Likudnik é um site associado ao Likud, partido da direita israelense, do qual fez parte Ariel Sharon antes de fundar o seu Kadima. Ainda fazem parte do Likud, Binyamin Netanyahu, conhecido líder da direita de Israel, e Silvan Shalom, nascido na Tunísia, uma nova força dentro do partido, que foi ministro para Assuntos Exteriores. Shalom, inclusive, ganha destaque logo na abertura do site Em mais um trecho, o texto prossegue: “Ele (Latuff) é o cabeça de uma das maiores indústrias de propaganda e incitamento contra Israel. Ele destila veneno por toda parte. O dano que ele está fazendo a Israel, junto à juventude mundial, é enorme. Ele é um dos mais influentes anti-sionistas da rede mundial de computadores, um talento gráfico fantástico e um grande cartunista. Ele sabe como influenciar através da Internet. É o campeão da indústria de maldades iraniana e seus cartuns participam da galeria de negação do Holocausto de Teerã. Ele odeia a América e Israel, seus cartuns mostram os israelenses e seus líderes como demônios. Ele envia mísseis de ódio não menos potentes que aqueles que o Irã está desenvolvendo e faz parte da gigantesca indústria genocida, cuja missão é a destruição do Estado judeu”. A ligação afetiva de Latuff com a Palestina, e consequentemente de seu trabalho como forma de retratar a ocupação, começou em 1999, quando foi convidado a visitar os territórios por causa de um cartun que enviou a ONG ‘Palestinian Center for Peace and Democracy’. “Eles gostaram e disseram que se eu estivesse interessado e pagasse minha passagem, me levariam durante três dias em um tour para conhecer a real situação nos territórios”. Latuff resolveu fazer dos três dias duas semanas e alongou sua visita. Foi a Ramallah, Nablus, mas o fato que mais o marcou ocorreu em Hebron. A cidade de Hebron, Al-Khalil em árabe, fica mais ao sul da ainda hoje ocupada Cisjordânia e tem sua administração oficialmente dividida entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina. A maioria da população é árabe, mas há uma colônia israelense no centro de Al-Khalil que abriga cerca de 400 pessoas. “Um dia fui até o assentamento, queria conversar com aquelas pessoas. Conheci Sarah, uma mulher que deixou Miami para viver em Hebron. Uma menina bonita. Aí, ela disse: ‘Um dia o Messias virá e vai ripar os árabes daqui’. Depois, à noite, no caminho de volta para Jerusalém, cruzei com uma família palestina, um homem, sua esposa e duas filhas. Tentei conversar com ele, mas ele não falava bem inglês. Ele disse que me levaria a um amigo dele que falava. Seu nome era Adris. O cara me recebeu na casa dele, me serviu banana e café. Ele me contou um rosário de desgraças. Uma hora ele abriu a carteira e caíram vários dentes. Eram dentes dele, que haviam sido arrancados por coronhadas de metralhadoras israelenses. Eu tive os dentes daquele homem na mão! Ele me mostrou recortes de jornal de agências, como a Reuters, que mostravam o dia em que ele foi agredido. Depois, ele chamou a filha dele, que devia ter uns nove, dez anos. Ele despiu ela na minha frente e mostrou uma série de queimaduras que ela tinha no corpo causadas por coquetéis molotov jogados pelos colonos.Esse tipo de experiência me fez ter consciência de que é preciso apoiar os palestinos na sua luta por independência e criticar veementemente essa ocupação. E prometi a esse senhor que iria me empenhar como cartunista e colocar minha arte em favor da causa palestina e na denúncia desses crimes feitos pelo Estado de Israel”. O cartunista brasileiro conheceu uma Palestina que vivia o auge do fracasso pós-Oslo, prestes a explodir na Segunda Intifada. Adris viu em Latuff, como todo palestino vê nas pessoas que visitam a Palestina, uma oportunidade para que sua história e a de seu povo sob ocupação sejam contadas. Para a sorte de Adris, no seu caso, essa pessoa era um talentoso cartunista. Desde então, os retratos de Latuff giraram em torno das políticas de Estados Unidos e Israel. O seu trabalho, a partir de então, se tornou conhecido e popular, inclusive na Palestina. “Fiquei superfeliz, me disseram que em Ramallah as pessoas usam um chaveiro com um desenho meu, dizem que é uma coisa popular”. Nesses sete anos de trabalho diretamente ligados à Palestina, Latuff já havia recebido outras ameaças e críticas, mas jamais vindo de vozes tão próximas ao poder de Israel. A ameaça do Likud e o fato de ser um possível alvo da direita não o assustam. “Vivendo no Rio de Janeiro, posso ser baleado ao sair de casa”. Latuff acredita que seu trabalho relacionado à Palestina, e o episódio da ameaça em particular, cumprem um papel importante, que é expor, desnudar e fazer compreender como funciona a estratégia de silenciar o pensamento discordante. Para o cartunista, estratégia fascista que, inclusive, lembra o que fizeram os nazistas na década de 30 e 40. “Antes que você pudesse pegar os judeus e enfiar num vagão de trem e mandar a um campo de concentração, você precisou criar um clima de animosidade, e isso você cria com a demonização. As minhas charges, e você pode buscar todas elas na internet, desde 1999, não apresentam os judeus como inimigos do Estado, como câncer do mundo, como mal do mundo, nem o judeu, nem o judaísmo. Em nenhuma imagem você encontra isso. Todas elas estão relacionadas à questão palestina, essencialmente. A minha crítica se direciona às políticas de Estado de Israel, nunca foi contra os judeus ou à sua religião. A minha questão é em relação aos palestinos. No momento em que existir uma solução, seja um Estado para ambos os povos ou dois Estados para os dois povos, no momento em que existir isso e os palestinos forem respeitados em seus diretos, a minha crítica a Israel e aos israelenses cessa, ela não tem razão de existir. No momento em que os palestinos forem respeitados e tiverem seu espaço, não há mais motivo para eu criticar isso. E ponto final”.

Continua em: Para Israel, opinião diversa de suas políticas precisa ser silenciada