É Fantástico: a serviço da ocupação israelense, a farsa da divisão religiosa

Qui, 30/06/2016 - 10:33
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Leia o artigo da jornalista Soraya Misleh, membro da Diretoria do ICArabe, sobre a reportagem veiculada pelo programa da TV Globo. É senso comum nas palestras e debates sobre a questão palestina a pergunta sobre o papel da religião no “conflito”. A história desmonta: a motivação é política, fruto da colonização na região, projeto do imperialismo. Em cinco minutos e 34 segundos, tal representação – que os palestinos tanto lutam para desmontar – teve lugar durante o Fantástico, programa dominical da Rede Globo. A reportagem, exibida no dia 19 de junho último, trazia o popular Padre Fabio de Melo em visita a Gaza. Na chamada, uma aula do que não se deve fazer no jornalismo: imagens soltas e desconectadas do Iraque, da Síria e de Gaza para construir uma narrativa falsa: atrelar o crescimento do Estado Islâmico à redução do número de palestinos cristãos na estreita faixa ocupada por Israel. “Para conhecer de perto a realidade dos cristãos do Oriente Médio, o Pe. Fabio de Melo foi visitar famílias que vivem acuadas pelos extremistas islâmicos em Gaza”, relata o repórter Rodrigo Alvarez. 

O bloqueio criminoso israelense a que estão submetidos os palestinos há dez anos no pequeno território desaparece e dá lugar ao uso da religião para encobrir os crimes da ocupação e colonização. O desserviço e desinformação permeiam toda a edição, a começar por confundir o autonomeado Estado Islâmico (EI) com os seguidores da religião islâmica, que em sua esmagadora maioria abominam as práticas do grupo – um elemento contrarrevolucionário financiado pelo imperialismo. A reportagem não traz qualquer fonte muçulmana, não apresenta qualquer contextualização histórica, inclusive sobre as relações entre os seguidores das diferentes religiões, mas foca o “fundamentalismo” islâmico como a causa da expulsão de cristãos de Gaza.

Diante da visão orientalista que traz o questionamento sobre as relações inter-religiosas no mundo árabe, é necessário esclarecer: é recorrente a solidariedade entre cristãos e muçulmanos não só na faixa, como em toda a Palestina ocupada. São inúmeros os exemplos. Em novembro de 2007, um livreiro cristão de Gaza, chamado Rami Ayyad, foi assassinado. Em 2014, durante o genocídio israelense, um míssil atingiu a casa da família Ayyad. Imediatamente, em ambos os casos, veio das mesquitas o chamado para acolher e rezar por eles, lado a lado com a Igreja. Há dois anos, reportagem no portal Electronic Intifada trazia a notícia de que, além de rezarem juntos, cristãos e muçulmanos compartilhavam a solidariedade sob outras formas: acolhiam-se mutuamente quando perdiam suas casas em bombardeios. No dia a dia, essa também tem sido a regra nas relações entre os palestinos, diante de uma realidade de desumanização e privações de toda ordem, imposta pelo bloqueio israelense. 

 

Segundo reportagem publicada em 2007 no portal Electronic Intifada, o chefe da comunidade católica-romana de Gaza, Monsenhor Manuel Musallam, enfatizou: “Rami não era só cristão. Era palestino.” Em outro trecho, ele conclui: “Se os cristãos emigram, não é por causa dos muçulmanos. É porque nós sofremos com o cerco israelense e buscamos liberdade, uma vida diferente da vida de cães que somos forçados a viver.” No mesmo texto, escrito por Mohammed Omer, vários jovens na faixa de 16 a 18 anos, deixam claro que a religião não é central. “Temos unidade na luta, unidade de objetivos. (...) Essa terra é nossa”, declarou Lelias Ali, 16 anos. “Ser cristão ou muçulmano não é uma questão. Vou à casa de meus amigos em ocasiões tristes e felizes, incluindo Natal. Eles me visitam durante o Eid, ao fim do Ramadã”, completou Diana al-Sadi, 17.

Essa não é apenas a realidade em Gaza, em que os cristãos somam 3.500 cidadãos –1,25% dos 1,8 milhão de palestinos que ali vivem. Na Cisjordânia, em que são 47 mil, é tradição os cristãos acordarem os muçulmanos durante o período sagrado do Ramadã para suas primeiras orações matinais. Um dos muitos gestos de amizade que se pode encontrar nas ruas da Palestina ocupada.

Colonização

Não há diferença no tratamento desumano que é reservado por Israel a palestinos nem na discriminação que sofrem em toda a Palestina – sejam cristãos, muçulmanos ou não religiosos. 

Durante a nakba (catástrofe representada pela criação do Estado de Israel em 1948), foram destruídas 500 aldeias e expulsos 800 mil palestinos de suas terras. O Frei Martinho Penido-Burnier, brasileiro, presenciou a limpeza étnica e a denunciou em carta endereçada ao ministro das Relações Exteriores, embaixador Raul Fernandes (confira em http://goo.gl/ro4G1R). Relatou as atrocidades cometidas pelos sionistas, inclusive “profanação” de lugares sagrados para os cristãos.

Conforme conta o palestino Abder Raouf Misleh, expulso de sua terra aos 13 anos durante a nakba, até aquele momento, há 68 anos, não apenas cristãos e muçulmanos palestinos, mas também judeus “brincavam juntos, sem rótulos”. O sionismo (movimento político pela constituição de Israel como um estado judeu homogêneo em terras palestinas) trouxe uma nova realidade. Isso representou uma quebra nas relações históricas com os judeus, especificamente os sionistas, a maioria imigrante – portanto, não por sua religião, mas por estarem a serviço de um projeto colonial.

A solidariedade expressa em momentos recentes – como apontado neste artigo – foi a regra também em 1948. Cristãos e muçulmanos que tinham família em outras partes da Palestina ainda não ocupadas (o que veio a ocorrer em 1967) dividiram suas poucas terras e parcos recursos. Acolheram amigos e vizinhos refugiados, independentemente da religião que seguiam. Assim tem sido ao longo da história, em pequenos e grandes gestos, na resistência heroica de um povo que se nega a ser subjugado e apagado do mapa. Em solidariedade, é crucial ecoar suas vozes – silenciadas em reportagens como a do Fantástico. Por uma mídia livre, por uma Palestina livre.