Em meio ao conflito, um país destruído e um povo esquecido

Qui, 21/07/2005 - 16:50
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Os iraquianos Khalid Tailche (à esquerda) e Haik Khachadorian dão suas versões sobre um país que foi tirado das mãos de um governo autoritário, mas agora está sob a dominação de uma potência que leva o país ao caos e à instabilidade.por Arturo Hartmann e Áurea Santos O Iraque é hoje um país em frangalhos, destruído e instável. Ainda assim, é um país que tem um povo, cultura e vontades. Mas o quadro que chega até nós não traz um território que deveria ser dotado de soberania, mas sim um campo de batalha entre forças invasoras e grupos religiosos radicais. No turbilhão dos acontecimentos, a voz dos iraquianos é cada vez mais sufocada. Khalid Tailche é iraquiano de Mosul, cidade no norte do país. Formado em Letras no Iraque, hoje é professor de inglês em São Paulo. Para ele, quando se trata da mídia brasileira – que diz acompanhar com freqüência -, existe uma parcialidade e um maniqueísmo na cobertura. “Eles olham apenas um lado e não deixam espaço para os próprios iraquianos se manifestarem”. Haik Khachadorian fez dois anos de Engenharia de computação na capital Bagdá, onde nasceu em 9 de outubro de 1971. Não terminou a faculdade, fugiu do exército no sexto mês de serviço, em 1991, antes de ser enviado ao Kuwait, e chegou ao Brasil no ano seguinte. Por agora, não pensa em voltar. Se adaptou bem ao Brasil. Mas o sentimento de mágoa que tem de Saddam, “que maltratou muito os iraquianos”, e o ódio dos Estados Unidos, que jogam o país em um buraco de incertezas e numa guerra civil, acompanham este descendente de armênio. INCERTEZAS Até o momento, segundo o relatório “Iraq Body Count”, do grupo de pesquisa Oxford (www.iraqbodycount.net), 24.865 civis morreram no país durante os dois anos seguidos à invasão liderada pelos Estados Unidos. Cerca de 37% das mortes foram causadas pelas tropas da ocupação. As forças de resistência e os radicais religiosos, juntos, foram responsáveis por 9%. Ainda segundo o relatório, 36% das mortes ocorreram por causa de violência criminal, supostamente não diretamente ligadas ao conflito. No Iraque de hoje é difícil conseguir trabalho e a segurança é zero. Não há governo, não há leis, não há futuro. O poder de fato está nas mãos dos EUA. No presente e futuro próximo, o país dependerá da boa-vontade da potência. Para Haik, no entanto, não interessa a eles que o país consiga a estabilidade. O iraquiano acredita que “quanto mais bagunça, para eles mais interessa”. O clima caótico legitimaria a continuação da ocupação e da realização dos interesses estadunidenses, sejam eles o domínio do petróleo da região, uma estratégia geopolítica para encurralar a Rússia na Eurásia ou o incentivo à indústria de armamentos nacionais. O fato é que os EUA já tiveram uma chance para acabar com o governo Hussein, na época da guerra do Kuwait. Se voltarmos mais atrás, no final da década de 70 e começo da de 80, vemos que o governo estadunidense criou Saddam ao apoiá-lo na guerra contra o Irã. A bagunça provocada pelo descaso dos EUA joga o país em uma guerra civil sangrenta, como observado pelos números do grupo Oxford. A insegurança é tanta que bairros de algumas regiões de Bagdá montam suas próprias milícias de proteção. “Cada um procura sua segurança da maneira que acha que é bom, já que não tem lei”, conta Haik. Kalid avalia que os americanos julgaram erroneamente qual seria a reação iraquiana à invasão, e que foram as próprias decisões americanas que abriram espaço para a ação dos movimentos radicais. “Eles mandaram o exército embora, e aí, do exército que estava controlando o país, de repente, não tinha mais ninguém. Virou ‘terra de ninguém’. Se você vai liberar o exército e as forças da polícia, você tem que colocar uma alternativa no lugar. Então foi uma estupidez da parte da política americana no Iraque”. GRUPOS RELIGIOSOS O processo desastroso causado pela invasão é uma das poucas qualidades que esses dois iraquianos vêem no governo de Saddam Hussein. Segundo ambos, Hussein, à força, conseguiu manter uma estabilidade entre as religiões dentro do país e impediu que movimentos mais radicais entrassem no país vindos do Irã ou passando pela Jordânia. O governo autoritário evitou um “outro Líbano”. Khalid considera que o período em que o Iraque viveu sob o comando de Saddam foi positivo porque ele evitou os ataques que hoje são freqüentes. “O Iraque nunca teve isso, porque, nesse sentido, ele tinha força para controlar o país. Então, não tinha como uma pessoa de fora do país entrar para fazer essas coisas”. O Iraque possui cerca de 26 milhões de habitantes (até antes da invasão, pois hoje é difícil fazer a estatística). Noventa e sete por cento da população é muçulmana, dividida entre a maioria xiita, em torno de 60%, e os sunitas, que representam 37%. Khalid pertence à minoria cristã, de cerca de 3%. “Não há problemas entre os dois [sunitas e xiitas]. Se você vai seguir as notícias de todo dia, os líderes religiosos dos dois lados declaram a mesma coisa: diálogo, tolerância, para não entrar na onda de violência, para não entrar nas idéias radicais. Então, eu acho muito interessante que eles têm consciência que há alguém que tem interesse para mudar esse país para mais um Líbano durante a guerra civil”. Khalid e Haik afirmam que, como armênios e cristãos, no Iraque, sempre houve e há até hoje liberdade de culto. “Aquele é um país é muçulmano, mas lá nunca ninguém ofende porque é de outra religião. Nós temos, só em Bagdá, três clubes armênios, três igrejas armênias. Inclusive, os muçulmanos freqüentam a igreja da Nossa Senhora, que é armênia. Eu já visitei várias mesquitas lá”, afirma Haik. RUIM COM SADDAM HUSSEIN A simpatia dos dois iraquianos para com Saddam Hussein acaba no limite entre as liberdades religiosas e a liberdade política e de expressão. A lei da mordaça funcionava quando o alvo era o governo. Saddam era intocável, no corpo e na imagem. Uma ditadura que poderia lembrar a brasileira, em que os oposicionistas eram perseguidos, mas que parte da população poderia levar o seu dia-a-dia sem grandes problemas. A vida poderia ser tranqüila, desde que não se tocasse no nome de Saddam. As críticas ao regime superam as qualidades enxergadas durante o governo de Saddam. Haik demonstra imensa mágoa quando perguntado sobre como deveria ser o julgamento do ex-governante. “Ele tem que ser morto, maltratou muito da gente. Você ter que largar seu país, largar sua família, seus amigos por causa de um senhor, para não falar outra coisa. Quantas milhões de pessoas existem igual eu? Por que eu devo morar longe do meu irmão, por que eu não curto meus sobrinhos?”. PIOR COM OS EUA Muitos iraquianos esperavam pelo momento da saída do governo autoritário de Hussein do poder. Segundo Khalid, a democracia é desejo de grande parte da população. Mas ele faz uma ressalva. “Quando eu falo democracia, isso é muito polêmico. Qual é a democracia no Ocidente e qual a do Oriente? Isso é complicado. As pessoas têm tendência de colocar as idéias num quadrado bem simples. Ou você tem ou você não tem. Mesmo nos países do Ocidente, pode-se observar que a democracia não tem uma forma só. O Iraque vai achar a própria democracia, não vai ser o modelo americano”. E é a invasão estadunidense que diferencia o radicalismo que mata iraquianos, em mercados e mesquitas, da resistência contra a invasão e dominação estrangeira. Os EUA são mais indesejáveis que o ex-governo. “O que você pensa em relação à Amazônia? E se os EUA entrarem na Amazônia? Qualquer um que invade sua casa, você vai se revoltar contra ele. Não existe isso. Com Saddam Hussein era ruim, sem ele é pior. EUA levantou a bandeira, vamos ajudar o povo iraquiano, mas o que eles fizeram? Agora a gente não sabe que situação a gente fica”, diz Haik.