Espetáculo da retirada ofusca problemas de um conflito longe de solução

Qui, 15/09/2005 - 17:50
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Cobertura ignora que Plano de Desligamento unilateral de Israel visa reforçar ocupação na Cisjordânia, dificulta processo de paz e formação de um Estado palestino soberano e auto-sustentável. Na foto, Jerusalém, ponto essencial para a paz, mas no qual Israel não quer ceder.Por Arturo Hartmann, Fabiana Nanô e Fábio Sanches Entre os dias 15 e 19 de agosto, o mundo assistiu ao Plano de Desligamento, a retirada de todos os 21 assentamentos judaicos que ocupavam o território palestino da Faixa de Gaza, uma região de cerca de 360 km2. O Plano também desmantelou quatro assentamentos no ainda ocupado território da Cisjordânia. A princípio, e na visão mais difundida sobre o episódio, um passo doloroso dado por Israel em direção à paz e ao fim do conflito na região da Palestina. Na prática, uma mudança de estratégia por parte do governo israelense para impedir a formação de um Estado palestino soberano e auto-sustentável. O eixo central da cobertura da desocupação deu destaque ao drama dos colonos israelenses ao deixarem suas casas. Na “Newsweek”, o título da reportagem foi “O fim de um sonho”. Ali, a revista retratou toda a história israelense em Gaza, mostrou fotos dos primeiros colonos, de vários assentamentos e do sofrimento do povo durante a retirada. A única menção feita sobre o povo palestino foi a violência e a desorganização que o novo Estado iria enfrentar. O “cnn.com”, no segundo dia da desocupação, publicou reportagem sobre uma manifestação de judeus de Nova York que rezavam em apoio aos israelenses expulsos de seus assentamentos. No Brasil, o “Jornal Hoje”, da Rede Globo, detalhou durante toda a semana a retirada forçada de cinco famílias, uma por dia. O desolamento dos judeus ortodoxos, que não aceitavam o fim do sonho da construção da Israel bíblica – incluindo o Estado de Israel e os territórios ocupados palestinos - e a luta contra o exército de seu próprio país foram as imagens mais reiteradas ao redor do mundo. Ao trazer para o primeiro plano o espetáculo do sofrimento dos colonos e considerar a saída como um dia histórico no contexto do conflito, as notícias consideraram como secundário os movimentos que garantiram a inviabilidade de um Estado palestino, além de não mostrar toda a história sofrida da população de Gaza. Na verdade, ao difundir essa imagem, colaboraram para que uma solução na região se torne cada vez mais difícil. O passo de Sharon foi calculado. O Desligamento tentou dar solução a um problema preocupante para os israelenses, ausente na cobertura, mas que pode pôr em xeque a própria existência demográfica de Israel como Estado judaico: o maior crescimento populacional dos árabes. Hoje, considerando as terras que englobam Israel e os territórios ocupados, a população de judeus é quase duas vezes maior que a de árabes. Mas, segundo o jornalista brasileiro Ariel Finguerman, que passou quatro anos na região e é autor do livro “Retratos de uma Guerra”, “naquela porção de terra que compreende Israel e territórios palestinos, a previsão é que dentro de 10 anos, as populações se igualem”. Aliado ao crescimento, uma outra ameaça ao Estado israelense é o direito de retorno, ou seja, o direito para que os cerca 1,5 milhão de palestinos expulsos de suas casas pelas incursões militares israelenses desde 1948 voltem para suas terras de origem, o que incluiria regiões de Israel. Somados esses dois fatores, a população judaica tenderia a se tornar minoria. “Essa é um posição muito clara de Israel. Eles afirmam que cederão na questão das terras se os palestinos cederem no direito de retorno, que fique limitado apenas para os territórios palestinos”, explica Finguerman. Com a entrega de Gaza, Sharon dá a impressão de que cedeu e agora pode exigir. Entre outras coisas, pode exigir que o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, use políticas, de repressão se necessário, que eliminem práticas de grupos tachados de terroristas, como o Hamas. Sob o pretexto de buscar o fim da violência e instalar um processo democraticamente negociado, quer eliminar os setores palestinos que oferecem maior resistência diante dos abusos israelenses. Desse modo, a estrada para completar o estabelecimento do Estado de Israel fora das fronteiras delimitadas por resoluções da ONU, em território reconhecido internacionalmente como palestino, estaria aberta. Gaza foi entregue - e isso foi largamente noticiado - porque cerca de 9,5 mil colonos judeus viviam em meio a 1,4 milhão de árabes palestinos. Isso era custoso para o Estado de Israel, que precisava mobilizar uma força de 15 mil soldados para proteger os assentamentos nessa Faixa. No artigo “A retirada da Faixa de Gaza e a armadilha política de Israel na Palestina” (veja na seção de Download do ICArabe), a historiadora Arlene Clemesha lembra que a população das colônias representava 0,5% da população de Gaza, mas ocupava 25% do território e 40% de suas terras cultiváveis, consumindo a maior parte da água que abastecia a região. Região pobre, o desenvolvimento em Gaza terá problemas. Israel controlará suas fronteiras, espaço aéreo e mares. Ambas as fronteiras, que dividem Gaza de Israel e Gaza do Egito, também estarão militarmente controladas por Israel, seja para a movimentação da população, de produtos agrícolas ou remédios cruciais. Arlene afirma que “longe de abrir melhores perspectivas para a população de Gaza, a retirada unilateral corre o risco de criar uma catástrofe humanitária. Enclausurada e sem infra-estrutura básica, a vida em será como a de uma prisão a céu aberto”. CISJORDÂNIA FRAGMENTADA – Israel quer que os palestinos cedam quanto ao direito de retorno e exige o desarmamento de grupos de resistência, mas não cede em um dos pontos centrais para os palestinos: a desocupação total da Cisjordânia, com uma área de 5.800 km2 (aproximadamente quatro vezes maior que o município de São Paulo) e a entrega de Jerusalém Oriental. Para o historiador André Gattaz, autor do livro “Guerra da Palestina”, a entrega de Gaza se deu por uma questão estratégica. Desse modo, Israel cria um fato positivo, cria a possibilidade ilusória de os palestinos terem o território deles. “Em compensação, na Cisjordânia, não vai haver a saída (...) A estratégia agora é segregar a Cisjordânia em áreas para os palestinos e para os israelenses, anexar Jerusalém Oriental completamente e jamais devolver essas terras”. A saída da Cisjordânia seria mais complicada. Ali, 246 mil colonos judeus vivem entre 2,4 milhões de palestinos. Se somarmos a população de Jerusalém Oriental e cercanias, a população dos colonos chega a 421 mil. E ao que tudo indica, o Estado de Israel pretende aumentar o controle sobre a região, pois em junho anunciou a intenção de construir três mil novas casas na região. No último ano, 20 mil colonos foram instalados naquelas terras.