Um diálogo com o passado aborda problemas da mulher

Qua, 06/07/2005 - 12:50
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No filme da diretora Moufida Tlatli, situação política da Tunísia pré-independente é pano de fundo para um retrato da condição da mulher. Condição problemática até hoje torna a abordagem da história atualO filme “Os Silêncios do Palácio” conta a história de Alia, que ao receber a notícia da morte de Sid Ali, membro da aristocracia tunisiana e que a tutelou durante a infância, volta para a casa em que morou para as cerimônias de sua morte. Essa volta, na verdade, representa a busca pela própria identidade de Alia. E no percurso, os problemas da condição da mulher na sociedade da Tunísia, pouco antes de sua independência da França, são destacados e tomam forma sob a lente da diretora Moufida Tlatli. Mas o fato de estar limitado a uma certa época e contexto histórico não impede que as discussões tomem um caráter universal. O debate realizado após o filme, último do ciclo de cinema “Cultura Árabe em debate”, promovido pelo Instituto da Cultura Árabe e o Centro Cultural São Paulo, expôs a atualidade do assunto. Mansur Lufti, professor de Educação da Unicamp, apresentou o debate e explicou que, ainda que sob domínio francês, a Tunísia tinha um espaço de liberdade concedido. Haviam governantes de província locais, chamados “Bei”. Sid Ali, no filme, representa essa autoridade. Cristina Bruzzo, também professora de Educação da Unicamp, destacou as escolhas que a diretora tomou para contar a história em seu primeiro filme longa-metragem em que dirige e escreve o roteiro. Na interpretação de Bruzzo, Tlatli faz um entrelaçamento quase como uma colagem poética, uma mistura entre passado e presente que não se completa claramente. “A história se constitui como um quebra-cabeças que nunca se completa. Nem com a história principal dessa personagem, nem com o pano de fundo, os acontecimentos políticos se passando com a frente nacional”. Para Bruzzo, através das lembranças de Alia, há um constante regresso, sempre desencadeados por objetos que fizeram parte do passado da mulher. E esses pedaços recortados e incompletos da história nos remetem à idéia de lembranças. “Está desenvolvido de uma maneira que podemos questionar se, nessa descoberta que ela faz do possível pai dela, estamos percorrendo os acontecimentos que se passaram ou as lembranças que ela tem dele, construções que ela faz. Cada vez que lembramos de episódios nós acrescentamos coisas a ele”. E nas lembranças de Alia, percebemos as divisões dentro da sociedade tunisiana, tanto de classe, quanto de gênero. Há uma clara dominação de um mundo de cima, da casa dos aristocratas, e do mundo de baixo, das mulheres colocadas como serviçais. Esses dois mundos se configuram a partir da dominação colonial e da dominação masculina, com regras claras que definem o lugar e cada um e o que cada um pode e não pode fazer. No entanto, o mundo de baixo, espaço de confinamento, para Bruzzo, é o espaço dos acontecimentos mais intensos. “Eles evidenciam o refinamento da cultura árabe antiga, esta que sobrevive a todas estas diferentes colonizações pelas quais a Tunísia passou, e não só esse país. O canto, a música, o som do alaúde, os tambores, os episódios da solidariedade entre essas mulheres, momentos de alegria, os cheiros da comida. Ali as coisas acontecem”. Para Muna Zeyen, professora e militante dos direitos da mulher, “Os Silêncios do Palácio” é um forte filme de denúncia, que traz um olhar de protesto, de curiosidade, de violência, de discriminação, de esperança. “A mulher pouco se conhece, pouco se fala do corpo da mulher, da sexualidade da mulher. E o filme começa com duas abordagens muito fortes, o aborto e a morte”. Zeyen afirma que o filme retrata a falta de diálogo da mulher. “As mulheres pouco se expressam. No mundo, ela pouco pôde falar, expressar ‘eu não posso’, ‘eu não gosto’, ‘eu não quero’. Isso é uma coisa que a gente vê hoje”. Apesar da submissão, um ponto destacado pelas duas debatedoras é a forma como aquelas mulheres conseguem dar a oportunidade para que Alia consiga se livrar da dominação imposta. “Ela tem a ajuda das outras mulheres dali. Ter as condições de tomar as rédeas de seu próprio destino, que está impedido para todas mulheres que estão lá”, explica Bruzzo. Já para Muna, “a solidariedade é muito forte. A força das mulheres é muito forte para romper com aquela dominação, que em todo momento é vista como natural”. Mas os problemas para Alia não acabam quando ela sai da casa em que foi criada. Logo que o filme começa, ela está diante de uma gravidez e uma imposição para abortar do homem com o qual vive. De certa forma, o modelo se reproduz. Mas Muna aponta que a decisão final de Alia, de ficar com a criança, é libertadora. “A mulher árabe, por mais que tenhamos que ela é censurada e discriminada, ela tem dentro dela uma força muito grande, força de tentar romper com uma dominação milenar histórica na humanidade”. Na busca pela identidade de seu possível pai, ao recordar e enfrentar os problemas vividos pela mãe, Alia acaba encontrando a identidade da mãe, descobrindo quem era aquela mulher.